Sagrada Família , China, prov. Beijing, 1750-1770
pintura s/ papel, montado em seda
84 x 63 cm
D1958
Esta grande pintura a tinta e cor sobre papel, talvez papel de amoreira chinês ou xuān, representando a Sagrada Família, foi executada na China nas últimas décadas do século XVIII.
Totalmente sinicizados quanto à fisionomia, a obra apresenta o Menino Jesus, quase despido e sentado numa mesa redonda, estendendo um pequeno pão aos seus pais, que o abraçam ternamente, preenchendo inteiramente a composição. À excepção dos traços faciais, a Sagrada Família é retratada como uma modesta família rural europeia de Setecentos. O velho pai enverga camisa de linho branco e outras peças de roupa folgadas sobrepostas (casaco verde de mangas compridas e roupão cor de salmão); a sua espada, em posição vertical, está apoiada na parede atrás de si, com o tricórnio de feltro, verde e preto, pendurado nas guardas da espada. A Virgem, bem mais jovem, veste também trajes domésticos do quotidiano, incluindo uma camisa (ou chemise) de decote baixo e punhos franzidos, um corpinho verde e uma saia branca, presa à cintura por estreita faixa azul; sobre elas, enverga um robe de chambre carmesim. O cabelo de Nossa Senhora está coberto por uma faixa estreita de tecido branco estampado, atada por fita verde.
Apenas o chapéu do homem oferece-nos suficientes indícios para nos aproximarmos da data da pintura. O chapéu de três pontas com aba levantada, o tricórnio - então conhecido como chapéu de aba “armada” - evoluiu a par das perucas nos finais do século XVII. À medida que as perucas cresciam as abas, dos então populares chapéus redondos de aba larga, começaram a ser dobradas para cima. Quando dobradas, ou “armadas” em três partes, formavam o tricórnio, de regra usado com uma das pontas voltada para a frente. Feitos de fibra animal - com versões mais dispendiosas em feltro de pelo de castor e outras mais económicas em feltro de lã - os tricórnios atingiram o auge da moda em meados de Setecentos. No entanto, saíram de uso logo nos inícios de Oitocentos, transformando-se nos bicórnios.
Talvez original na sua composição e nos detalhes iconográficos que apresenta, esta pintura chinesa parece basear-se em duas gravuras italianas. Uma [Fig. 1], produzida entre 1685 e 1740 por Cosimo Mogalli (1667-1750) a partir de um desenho de Francesco Petrucci (1660-1719), reproduz uma pintura da Sagrada Família de Giulio Romano (1499-1546) no Palazzo Pitti, em Florença. Esta gravura integra uma série intitulada Raccolta de’ quadri dipinti dai più famosi pennelli posseduti da S. A. R. Pietro Leopoldi, que reproduz pinturas da galeria do Grão-Duque de Florença. Encomendada por Ferdinando de’ Medici (1663-1713), a série foi apenas publicada em 1778 como um conjunto de 148 pranchas com uma página de rosto. A outra [Fig. 2], publicada antes de meado o século XVIII e executada por Giovanni Girolamo Frezza (1671-ca. 1748) a partir de uma composição de Carlo Maratti (1625-1713), representa a Sagrada Família com S. João Baptista Menino. Da primeira gravura o pintor chinês replicou a pose do Menino Jesus sentado - diferendo apenas na posição dos pés - com a mão segurando agora um pequeno pão; também a mão de S. José se assemelha à da Virgem na gravura. Da segunda gravura, o pintor inspirou-se na pose de Nossa Senhora, em especial a cabeça e a mão esquerda, fielmente copiadas; o decote baixo da figura parece também ter influenciado a composição final. A figura de S. José, poucas vezes representada abraçando a Virgem e o Menino Jesus, junto com sua espada e tricórnio - típicos de um homem de armas da primeira metade do século XVIII - deve derivar de uma fonte visual diferente, talvez mesmo não religiosa. Estas adições sugerem que, embora a execução da composição tenha sido realizada por um artista chinês, o desenho original foi, tudo o aponta, concebido por artista europeu.
A actualização de tão significativa uma cena religiosa enquanto representação de uma família coeva, setecentista, está em consonância com outras obras similares do período, que enfatizam as origens sociais humildes da Sagrada Família e os valores familiares que sustentam a fé cristã. No contexto da missionação na China no século XVIII, este tipo de representação sublinhava as virtudes da pobreza, humildade e devoção familiar, reflectindo os ensinamentos cristãos ao mesmo tempo ressoado ideais confucionistas como simplicidade e integridade moral.
O pão na mão do Menino Jesus está imbuído de rico significado simbólico. Na iconografia cristã, o pão simboliza com frequência o corpo de Cristo, em particular quanto à Eucaristia, onde Cristo é retratado como o “pão da vida”. Ao incluí-lo, o artista pode ter antecipado o papel futuro de Cristo no sacramento, enfatizando a sua natureza divina desde a infância. Além disso, o pão é um símbolo comum de sustento, tanto físico como espiritual. Para os crentes, a sua presença na mão da Criança pode simbolizar Cristo como provedor de alimento espiritual e mantedor de vida. O gesto de oferecer o pão aos seus pais pode evocar a missão de Cristo de prover salvação a todos, mesmo desde a infância. No contexto missionário na China, o pão pode também servir para estabelecer uma ponte entre significados culturais e religiosos, criando um vínculo visual entre os ensinamentos cristãos e as práticas locais de oferecer comida como gesto de respeito, partilha ou devoção. Este pormenor poderia tornar a mensagem de Cristo como fonte de nutrição espiritual mais compreensível e relacionável para o público chinês. A representação de uma Sagrada Família sinicizada funcionaria assim para superar divisões culturais, apresentando o cristianismo como crença universal, tornando-o ao mesmo tempo acessível e relevante para os chineses.
Considerando as suas generosas dimensões, materiais de alta qualidade e a integração hábil de técnicas tradicionais de pintura chinesa com convenções estéticas europeias, é provável que esta pintura tenha sido produzida em Pequim, no contexto da obra e ensinamentos dos missionários jesuítas, em especial Giuseppe Castiglione (1688-1768). Conhecido na corte imperial como Lang Shining, Castiglione serviu três imperadores e formou muitos artistas locais nas técnicas da pintura ocidental. Embora tanto ele como outros jesuítas estivessem proibidos de pintar obras cristãs na corte, estes e alguns artistas chineses convertidos produziram, tudo o leva a crer, pinturas religiosas sob sua orientação artística nos colégios e instituições jesuítas. E isto, apesar das perseguições da época por parte das autoridades chinesas e da supressão da Companhia de Jesus em 1759, seguida da sua abolição em 1773, data a partir da qual os jesuítas mantiveram operações clandestinas na China.
Dado o carácter profundamente sinicizado da obra - no formato (o rolo vertical, conhecido por guàzhóu ou lizhóu), na técnica e no estilo - o autor da nossa pintura foi seguramente de origem chinesa. No entanto, a total ausência de um corpus conhecido de obras similares impossibilita a atribuição desta pintura a um seguidor específico de Castiglione ou de qualquer um dos seus colegas jesuítas europeus activos na Cidade Proibida. Entre estes estão o francês formado em Roma Jean-Denis Attiret (1702-1768), que chegou a Pequim em 1738; o germano-boémio Ignaz Sichelbarth (1708-1780), que se lhes juntou em 1745; o italiano Giuseppe Panzi (1734-ca. 1812); e o francês Louis Antoine de Poirot (1735-1813), que chegou à capital imperial com Panzi em 1771.
Fig. 1 - Cosimo Mogalli, a partir de um desenho de Francesco Petrucci, copiando Giulio Romano, Sagrada Família ca. 1685-1740; gravura a buril impressa em papel (35,6 x 26,2 cm). British Museum, Londres (inv. 1861,0608.313)
Hugo Miguel Crespo
Totalmente sinicizados quanto à fisionomia, a obra apresenta o Menino Jesus, quase despido e sentado numa mesa redonda, estendendo um pequeno pão aos seus pais, que o abraçam ternamente, preenchendo inteiramente a composição. À excepção dos traços faciais, a Sagrada Família é retratada como uma modesta família rural europeia de Setecentos. O velho pai enverga camisa de linho branco e outras peças de roupa folgadas sobrepostas (casaco verde de mangas compridas e roupão cor de salmão); a sua espada, em posição vertical, está apoiada na parede atrás de si, com o tricórnio de feltro, verde e preto, pendurado nas guardas da espada. A Virgem, bem mais jovem, veste também trajes domésticos do quotidiano, incluindo uma camisa (ou chemise) de decote baixo e punhos franzidos, um corpinho verde e uma saia branca, presa à cintura por estreita faixa azul; sobre elas, enverga um robe de chambre carmesim. O cabelo de Nossa Senhora está coberto por uma faixa estreita de tecido branco estampado, atada por fita verde.
Apenas o chapéu do homem oferece-nos suficientes indícios para nos aproximarmos da data da pintura. O chapéu de três pontas com aba levantada, o tricórnio - então conhecido como chapéu de aba “armada” - evoluiu a par das perucas nos finais do século XVII. À medida que as perucas cresciam as abas, dos então populares chapéus redondos de aba larga, começaram a ser dobradas para cima. Quando dobradas, ou “armadas” em três partes, formavam o tricórnio, de regra usado com uma das pontas voltada para a frente. Feitos de fibra animal - com versões mais dispendiosas em feltro de pelo de castor e outras mais económicas em feltro de lã - os tricórnios atingiram o auge da moda em meados de Setecentos. No entanto, saíram de uso logo nos inícios de Oitocentos, transformando-se nos bicórnios.
Talvez original na sua composição e nos detalhes iconográficos que apresenta, esta pintura chinesa parece basear-se em duas gravuras italianas. Uma [Fig. 1], produzida entre 1685 e 1740 por Cosimo Mogalli (1667-1750) a partir de um desenho de Francesco Petrucci (1660-1719), reproduz uma pintura da Sagrada Família de Giulio Romano (1499-1546) no Palazzo Pitti, em Florença. Esta gravura integra uma série intitulada Raccolta de’ quadri dipinti dai più famosi pennelli posseduti da S. A. R. Pietro Leopoldi, que reproduz pinturas da galeria do Grão-Duque de Florença. Encomendada por Ferdinando de’ Medici (1663-1713), a série foi apenas publicada em 1778 como um conjunto de 148 pranchas com uma página de rosto. A outra [Fig. 2], publicada antes de meado o século XVIII e executada por Giovanni Girolamo Frezza (1671-ca. 1748) a partir de uma composição de Carlo Maratti (1625-1713), representa a Sagrada Família com S. João Baptista Menino. Da primeira gravura o pintor chinês replicou a pose do Menino Jesus sentado - diferendo apenas na posição dos pés - com a mão segurando agora um pequeno pão; também a mão de S. José se assemelha à da Virgem na gravura. Da segunda gravura, o pintor inspirou-se na pose de Nossa Senhora, em especial a cabeça e a mão esquerda, fielmente copiadas; o decote baixo da figura parece também ter influenciado a composição final. A figura de S. José, poucas vezes representada abraçando a Virgem e o Menino Jesus, junto com sua espada e tricórnio - típicos de um homem de armas da primeira metade do século XVIII - deve derivar de uma fonte visual diferente, talvez mesmo não religiosa. Estas adições sugerem que, embora a execução da composição tenha sido realizada por um artista chinês, o desenho original foi, tudo o aponta, concebido por artista europeu.
A actualização de tão significativa uma cena religiosa enquanto representação de uma família coeva, setecentista, está em consonância com outras obras similares do período, que enfatizam as origens sociais humildes da Sagrada Família e os valores familiares que sustentam a fé cristã. No contexto da missionação na China no século XVIII, este tipo de representação sublinhava as virtudes da pobreza, humildade e devoção familiar, reflectindo os ensinamentos cristãos ao mesmo tempo ressoado ideais confucionistas como simplicidade e integridade moral.
O pão na mão do Menino Jesus está imbuído de rico significado simbólico. Na iconografia cristã, o pão simboliza com frequência o corpo de Cristo, em particular quanto à Eucaristia, onde Cristo é retratado como o “pão da vida”. Ao incluí-lo, o artista pode ter antecipado o papel futuro de Cristo no sacramento, enfatizando a sua natureza divina desde a infância. Além disso, o pão é um símbolo comum de sustento, tanto físico como espiritual. Para os crentes, a sua presença na mão da Criança pode simbolizar Cristo como provedor de alimento espiritual e mantedor de vida. O gesto de oferecer o pão aos seus pais pode evocar a missão de Cristo de prover salvação a todos, mesmo desde a infância. No contexto missionário na China, o pão pode também servir para estabelecer uma ponte entre significados culturais e religiosos, criando um vínculo visual entre os ensinamentos cristãos e as práticas locais de oferecer comida como gesto de respeito, partilha ou devoção. Este pormenor poderia tornar a mensagem de Cristo como fonte de nutrição espiritual mais compreensível e relacionável para o público chinês. A representação de uma Sagrada Família sinicizada funcionaria assim para superar divisões culturais, apresentando o cristianismo como crença universal, tornando-o ao mesmo tempo acessível e relevante para os chineses.
Considerando as suas generosas dimensões, materiais de alta qualidade e a integração hábil de técnicas tradicionais de pintura chinesa com convenções estéticas europeias, é provável que esta pintura tenha sido produzida em Pequim, no contexto da obra e ensinamentos dos missionários jesuítas, em especial Giuseppe Castiglione (1688-1768). Conhecido na corte imperial como Lang Shining, Castiglione serviu três imperadores e formou muitos artistas locais nas técnicas da pintura ocidental. Embora tanto ele como outros jesuítas estivessem proibidos de pintar obras cristãs na corte, estes e alguns artistas chineses convertidos produziram, tudo o leva a crer, pinturas religiosas sob sua orientação artística nos colégios e instituições jesuítas. E isto, apesar das perseguições da época por parte das autoridades chinesas e da supressão da Companhia de Jesus em 1759, seguida da sua abolição em 1773, data a partir da qual os jesuítas mantiveram operações clandestinas na China.
Dado o carácter profundamente sinicizado da obra - no formato (o rolo vertical, conhecido por guàzhóu ou lizhóu), na técnica e no estilo - o autor da nossa pintura foi seguramente de origem chinesa. No entanto, a total ausência de um corpus conhecido de obras similares impossibilita a atribuição desta pintura a um seguidor específico de Castiglione ou de qualquer um dos seus colegas jesuítas europeus activos na Cidade Proibida. Entre estes estão o francês formado em Roma Jean-Denis Attiret (1702-1768), que chegou a Pequim em 1738; o germano-boémio Ignaz Sichelbarth (1708-1780), que se lhes juntou em 1745; o italiano Giuseppe Panzi (1734-ca. 1812); e o francês Louis Antoine de Poirot (1735-1813), que chegou à capital imperial com Panzi em 1771.
Fig. 1 - Cosimo Mogalli, a partir de um desenho de Francesco Petrucci, copiando Giulio Romano, Sagrada Família ca. 1685-1740; gravura a buril impressa em papel (35,6 x 26,2 cm). British Museum, Londres (inv. 1861,0608.313)
Hugo Miguel Crespo
Provenance
Adquirido por Bernard Jacobson, director da Companhia Holandesa das Índias Orientais, que trouxe a pintura de volta na década de 1930;- comprado a Anita Gray, Londres; - coleção privada Suíça.Publicações
CRESPO, Hugo M., Arte Cristã Chinesa, Dos Mares do Sul da China à Corte Imperial (1580-1900), Lisboa, São Roque, 2025, pp.114-121Receba as novidades!
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