Nossa Senhora Indo-portuguesa , séc. XVI
madeira, vestígios de policromia
110,0 x 55,0 x 35,0 cm
F1402
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Esta rara e importante escultura de Nossa Senhora entalhada em madeira, de rosto contemplativo, levemente inclinado e de mãos unidas à altura do peito, em gesto de oração (hoje perdidas), é representada como Virgem do Apocalipse triunfando sobre o mal. Assenta sobre uma figura quimérica, diabólica, simbolizando o mal: um grande dragão de cauda enrolada, cuja cabeça expressa a origem indiana desta escultura, já que representa o feroz yali - quimera com cabeça de leão e dentes ameaçadores - ou makara - um dragão (também sem asas) - presença habitual nos templos hindus no sul da Índia no período Vijayanagara enquanto elemento protector. O mais relevante paralelo que conhecemos para esta escultura é uma base integralmente entalhada em só peça em marfim, outrora de uma Nossa Senhora em marfim, de grandes dimensões, hoje perdida. A base representa um dragão de sete cabeças (Livro do Apocalipse 12:3-4) com suas cristas, cauda enrolada e patas de felino, também ela sem asas. O vestuário desta Nossa Senhora revela a cronologia do seu entalhe: veste saio vermelho (de corpinho e saia do mesmo) com decote recto à flamenga típico das primeiras décadas do século XVI, coberto integralmente pelo pregueado da camisa de linho por baixo e largo manto azul sobre os ombros, descobrindo a cabeça e longos cabelos, atado à frente por atilho. O tratamento estilístico do rosto, em especial o seu hieratismo e a expressão dos olhos, nariz e boca, assim como as orelhas destapadas, revelam também a sua origem nos territórios indianos sob directa influência portuguesa. A sua recuada datação permite propor Cochim (Kochi, no actual estado do Kerala) como a sua provável origem, já que a região foi desde tempos imemoriais um destacado centro de produção de obras em madeira (entalhe, marcenaria e construção) e tornar-se-ia, com a presença portuguesa, num dos mais importantes centros de construção naval (fazendo uso da resistente madeira local) no subcontinente. Análises levadas a cabo pelo prestigiado laboratório de análises científicas de obras de arte, o CIRAM em Bordéus - França, confirmaram a antiguidade da peça e também a identificação xilológica do material. Quanto à datação por radiocarbono, os resultados indicam uma probabilidade de 95,4% de corresponder ao intervalo entre 1299-1405. No entanto, é de ressalvar que as amostras foram retiradas do cerne, uma zona central do tronco e, portanto mais antiga; a datação apurada pode assim padecer do “efeito madeira antiga” (old wood effect em inglês, e effet vieux bois em francês) e o abate da árvore corresponder a um período posterior em muitas décadas. Um abate nos anos finais do século XV seria mais conforme à datação do entalhe do objecto baseada nos elementos estilísticos acima referidos. Quanto ao material botânico, trata-se de madeira da família Quercus spp. (que inclui o carvalho, sobreiro, azinheira, etc.), proveniente de zona temperada e não tropical. Dada a ausência de espécies de Quercus no subcontinente indiano e a circunstância de se tratar de madeira europeia (zona temperada), muito provavelmente de origem portuguesa, não deixa de causar alguma estranheza dada a grande abundância e riqueza em madeiras na Índia, aliás muito resistentes aos ataques de xilófagos e outras pragas. No entanto, sabemos como a madeira enquanto material viajou amiúde a bordo da Carreira da Índia. Dada a antiguidade da madeira, é de supor tratar-se aqui um aproveitamento de madeira portuguesa por entalhador local indiano, acaso material retirado de uma nau portuguesa. Através da tratadística coeva sabemos como a madeira preferida para a estrutura das naus portuguesas era o sobreiro (Quercus suber), a par da azinheira (Q. ilex) e outros carvalhos (Q. faginea e Q. robur), sendo o mastro usualmente de madeira de pinho (Pinus pinaster ou P. sylvestris).Esta rara representação de Nossa Senhora, certamente uma das primeiras esculturas de vulto produzidas no sul da Índia sob domínio e influência portuguesa que sobreviveu aos nossos dias, é um poderoso testemunho da presença lusa no subcontinente indiano e dos inícios da missionação cristã nesses territórios. A ausência de testemunhos artísticos desta qualidade e cronologia, e a raridade de exemplares entalhados em madeira nos territórios indianos sob directa influência portuguesa, com apurada história custodial e proveniência, tem limitado o estudo desta produção. Com efeito, não se conhece qualquer monografia sobre o tema, sendo bastante recentes os estudos de expressões artísticas afins, caso da talha.
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