Mesa filipina , Portugal, séc. XVII
Pau-Santo
82,0 x 136,0 x 89,0 cm
A578
Restauros no tampos.
Esta magnífica mesa em pau-santo foi construída durante o período Filipino (1580-1640) , no segundo quartel do séc. XVII. Segundo Bernardo Ferrão, este estilo marca “indelevelmente, alguns dos mais belos e puros móveis portugueses” embora influenciado pelos modelos espanhóis contemporâneos. Apresentando o tampo rectangular liso e saliente, a caixa contém duas gavetas que ocupam toda a sua largura. A frente é desprovida de decoração e os espelhos de entrada das chaves são em bronze, recortados em cruz, com braços terminando em flor-de-lis. Do lado oposto, duas gavetas simuladas, com espelhos análogos, indicam tratar-se de uma “mesa de centro”. A ondulação das pernas, de secção retangular, sugere a forma de lira, evidenciando influência das mesas italianas na Península Ibéria . Estão unidas lateralmente por travessas de idêntico corte facetado, com centro em forma de disco que se prolonga por balaústres, as quais, com o movimento em curva e contracurva das pernas, completam a lira. As pernas encontram-se unidas longitudinalmente por travessas recortadas e torneadas, em forma de balaústres estreitos, separados por elemento em forma de bolacha. Nas assemblagens evidenciam-se cavilhas em ferro (parafusos de armar circulares), que também encontramos nas ilhargas. Este tipo de mesas, tal como as de cavalete, seria certamente destinado à escrita e leitura. Apesar de terem algumas semelhanças com as denominadas bancas, como o prolongamento do tampo , diferem destas pelas menores dimensões e por não conterem gavetas na maior parte das vezes, assim como pela forma sinuosa das pernas. Neste período era usual cobrir as mesas de tecidos e brocados, tapeçarias, entre outros têxteis ricos, costume que perdurou em Portugal. A sobriedade desta peça, principalmente do tampo, realça a tonalidade clara desta qualidade rara de madeira de pau-santo, bem como o recorte elegante das pernas e das travessas. Existem exemplares de formato semelhante, com decoração linear e geométrica de embutidos no tampo e/ou nas gavetas (Fig. 1). Este grupo era também executado com outras madeiras, como vinhático, castanho, nogueira, etc. e, em alguns casos, com tampo e gavetas faixeadas e com embutidos. Esta tipologia serviu de modelo a um conjunto de mesas indo-portuguesas produzidas em finais do séc. XVI e durante o séc. XVII, partilhando, deste modo, uma estética semelhante a nível formal. Salientam-se os pés em voluta, com enrolamento para o interior, encontrados em algumas mesas indo-portuguesas e a certos contadores com trempe – quer de Goa, quer das possessões do norte do Estado Português na Índia - aqui com maior elaboração decorativa, onde o recorte e os embutidos desenham jatayus - pássaros enrolados sobre si próprios (Fig.2) . Este elemento decorativo indiano representa o Abutre, filho de Garuda (ave mítica) e companheiro de Rama , contendo um papel apotropaico.A par do mobiliário hispano-árabe, que apareceu nos finais do séc. XV-XVI, de inconfundível carácter espanhol, o mobiliário da renascença espanhola, ficou marcado pelo gosto mais austero de Herrera, o arquitecto de Filipe II. De facto, na segunda metade do séc. XVI o mobiliário ibérico caracterizava-se por uma “sobriedade dramática e inflexível” , para a qual terão contribuído, ainda antes, as leis “Pragmáticas” de D. Sebastião (1560) que mencionam o “luxo do vestuário, da casa e da mesa”, visando regular os usos e costumes dos portugueses. Com efeito, durante a União Dinástica, altura em que se sentiu fortemente a concorrência de outros Estados europeus pelas possessões ultramarinas portuguesas, a legislação (Leis Sumptuárias), que vinha já do reinado de D. Manuel I (Ordenações), visando refrear os gastos excessivos, incluindo o que concerne ao fausto da corte, da nobreza e até da burguesia endinheirada, foi promulgada no reinado de Filipe I, em 1583-1609, com novas proibições. Estas restrições, às quais também se aliam as de carácter religioso, lembrando que este foi o período da Contra-Reforma (1545-1648), refletiram-se nas artes em geral, incluindo o mobiliário, salientando-se a combinação de sobriedade e, simultaneamente, de sofisticação que a estética desta mesa com pernas em forma de lira proporciona.Neste sentido, na história do mobiliário, este período filipino corresponde ao período artístico do Maneirismo e reflete a influência dos modelos espanhóis daquela época . As mesas portuguesas levadas para a Índia serviram de modelo a uma produção local que combinou a forma europeia deste tipo de mobiliário com os materiais, técnicas de produção e motivos ornamentais, muitos deles típicos da religião Hindu, atestando as trocas interculturais e artísticas com o Oriente. A singular combinação entre a sobriedade do tampo e das gavetas, que contribui para realçar a beleza da madeira em pau-santo, e a sofisticação da parte inferior desta mesa filipina, permite identificar um interessante hibridismo no mobiliário português deste período, ainda pouco evidenciado.
Leonor Liz Amaral
BIBLIOGRAFIADIAS, Pedro, Mobiliário Indo-Português, Gráfica de Coimbra, Lda., 2013.FERRÃO, Bernardo, Mobiliário Português, A Centúria de Quinhentos, Vol. 2FREIRE, Fernanda Castro, 50 dos Melhores Móveis Portugueses, Colecção A Minha Escolha, Chaves Ferreira Publicações, 1995.FREIRE, Fernanda Castro; PEDROSO, Graça; HENRIQUES, Raquel Pereira, Mobiliário, Móveis de Conter, Pousar e de Aparato, Vol. II, Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva, Museu-Escola de Artes Decorativas Portuguesas, 2002.MARROCANO, João H., “Mobiliário Português de Estilo Nacional”, Res Mobilis, Revista Internacional de investigación en mobiliário y objetos decorativos, Vol. 10, nº 11, 2021.TEIXEIRA, Sara Sousa, A Arte Indo-Português na Ilha de Moçambique: Um Intercâmbio de Formas e de Gostos, Dissertação de Mestrado, Universidade Aberta, 2022.
Esta magnífica mesa em pau-santo foi construída durante o período Filipino (1580-1640) , no segundo quartel do séc. XVII. Segundo Bernardo Ferrão, este estilo marca “indelevelmente, alguns dos mais belos e puros móveis portugueses” embora influenciado pelos modelos espanhóis contemporâneos. Apresentando o tampo rectangular liso e saliente, a caixa contém duas gavetas que ocupam toda a sua largura. A frente é desprovida de decoração e os espelhos de entrada das chaves são em bronze, recortados em cruz, com braços terminando em flor-de-lis. Do lado oposto, duas gavetas simuladas, com espelhos análogos, indicam tratar-se de uma “mesa de centro”. A ondulação das pernas, de secção retangular, sugere a forma de lira, evidenciando influência das mesas italianas na Península Ibéria . Estão unidas lateralmente por travessas de idêntico corte facetado, com centro em forma de disco que se prolonga por balaústres, as quais, com o movimento em curva e contracurva das pernas, completam a lira. As pernas encontram-se unidas longitudinalmente por travessas recortadas e torneadas, em forma de balaústres estreitos, separados por elemento em forma de bolacha. Nas assemblagens evidenciam-se cavilhas em ferro (parafusos de armar circulares), que também encontramos nas ilhargas. Este tipo de mesas, tal como as de cavalete, seria certamente destinado à escrita e leitura. Apesar de terem algumas semelhanças com as denominadas bancas, como o prolongamento do tampo , diferem destas pelas menores dimensões e por não conterem gavetas na maior parte das vezes, assim como pela forma sinuosa das pernas. Neste período era usual cobrir as mesas de tecidos e brocados, tapeçarias, entre outros têxteis ricos, costume que perdurou em Portugal. A sobriedade desta peça, principalmente do tampo, realça a tonalidade clara desta qualidade rara de madeira de pau-santo, bem como o recorte elegante das pernas e das travessas. Existem exemplares de formato semelhante, com decoração linear e geométrica de embutidos no tampo e/ou nas gavetas (Fig. 1). Este grupo era também executado com outras madeiras, como vinhático, castanho, nogueira, etc. e, em alguns casos, com tampo e gavetas faixeadas e com embutidos. Esta tipologia serviu de modelo a um conjunto de mesas indo-portuguesas produzidas em finais do séc. XVI e durante o séc. XVII, partilhando, deste modo, uma estética semelhante a nível formal. Salientam-se os pés em voluta, com enrolamento para o interior, encontrados em algumas mesas indo-portuguesas e a certos contadores com trempe – quer de Goa, quer das possessões do norte do Estado Português na Índia - aqui com maior elaboração decorativa, onde o recorte e os embutidos desenham jatayus - pássaros enrolados sobre si próprios (Fig.2) . Este elemento decorativo indiano representa o Abutre, filho de Garuda (ave mítica) e companheiro de Rama , contendo um papel apotropaico.A par do mobiliário hispano-árabe, que apareceu nos finais do séc. XV-XVI, de inconfundível carácter espanhol, o mobiliário da renascença espanhola, ficou marcado pelo gosto mais austero de Herrera, o arquitecto de Filipe II. De facto, na segunda metade do séc. XVI o mobiliário ibérico caracterizava-se por uma “sobriedade dramática e inflexível” , para a qual terão contribuído, ainda antes, as leis “Pragmáticas” de D. Sebastião (1560) que mencionam o “luxo do vestuário, da casa e da mesa”, visando regular os usos e costumes dos portugueses. Com efeito, durante a União Dinástica, altura em que se sentiu fortemente a concorrência de outros Estados europeus pelas possessões ultramarinas portuguesas, a legislação (Leis Sumptuárias), que vinha já do reinado de D. Manuel I (Ordenações), visando refrear os gastos excessivos, incluindo o que concerne ao fausto da corte, da nobreza e até da burguesia endinheirada, foi promulgada no reinado de Filipe I, em 1583-1609, com novas proibições. Estas restrições, às quais também se aliam as de carácter religioso, lembrando que este foi o período da Contra-Reforma (1545-1648), refletiram-se nas artes em geral, incluindo o mobiliário, salientando-se a combinação de sobriedade e, simultaneamente, de sofisticação que a estética desta mesa com pernas em forma de lira proporciona.Neste sentido, na história do mobiliário, este período filipino corresponde ao período artístico do Maneirismo e reflete a influência dos modelos espanhóis daquela época . As mesas portuguesas levadas para a Índia serviram de modelo a uma produção local que combinou a forma europeia deste tipo de mobiliário com os materiais, técnicas de produção e motivos ornamentais, muitos deles típicos da religião Hindu, atestando as trocas interculturais e artísticas com o Oriente. A singular combinação entre a sobriedade do tampo e das gavetas, que contribui para realçar a beleza da madeira em pau-santo, e a sofisticação da parte inferior desta mesa filipina, permite identificar um interessante hibridismo no mobiliário português deste período, ainda pouco evidenciado.
Leonor Liz Amaral
BIBLIOGRAFIADIAS, Pedro, Mobiliário Indo-Português, Gráfica de Coimbra, Lda., 2013.FERRÃO, Bernardo, Mobiliário Português, A Centúria de Quinhentos, Vol. 2FREIRE, Fernanda Castro, 50 dos Melhores Móveis Portugueses, Colecção A Minha Escolha, Chaves Ferreira Publicações, 1995.FREIRE, Fernanda Castro; PEDROSO, Graça; HENRIQUES, Raquel Pereira, Mobiliário, Móveis de Conter, Pousar e de Aparato, Vol. II, Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva, Museu-Escola de Artes Decorativas Portuguesas, 2002.MARROCANO, João H., “Mobiliário Português de Estilo Nacional”, Res Mobilis, Revista Internacional de investigación en mobiliário y objetos decorativos, Vol. 10, nº 11, 2021.TEIXEIRA, Sara Sousa, A Arte Indo-Português na Ilha de Moçambique: Um Intercâmbio de Formas e de Gostos, Dissertação de Mestrado, Universidade Aberta, 2022.
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