Tony Malau - Santo António do Congo , Kongo Kingdom, 1684-1706
bronze
Alt.: 12 cm
F1363
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Rara escultura em bronze do do século XVIII, originaria do antigo Reino do Kongo - que abrangia o sul do actual Congo e o norte de Angola nas regiões de Cabinda, Zaire e Uíge principalmente - representando Santo António, também conhecido por Toni Malau, Dontoni Malau ou “António de Boa Fortuna”[1]. É inspirada num protótipo europeu de Santo António de Pádua ou de Lisboa (1195-1231)[2], introduzido no Congo pelos missionários portugueses nos finais do século XV[3].
A integração desta imagem na arte e cultura dos diferentes povos congoleses prende-se com as crenças populares portuguesas e a devoção a ele consagrada. Este Santo desempenha um papel maior na Ordem dos frades Menores, com os quais estavam relacionados os Capuchinhos, congregação que exerceu um papel preponderante na cristianização do Antigo Reino do Congo.
A estatueta, em pendente com gancho no reverso, apresenta-se de vulto perfeito, com características imagéticas da região. Com alguma geometria de formas, a imagem é fundida numa liga de metal, com certo rigor nos detalhes. O crânio é ovoide, macrocéfalo e o facies bem definido, visivelmente de etnia africana: nariz largo, olhos amendoados detonando uma certa exoftalmia, pálpebras salientes, boca de lábios proeminentes, calote calva e orelhas pequenas levemente esboçadas.
Numa atitude afetiva, Santo António envolve o Menino Jesus com o braço esquerdo e, com o direito, segura a cruz latina. O Menino apresenta as mesmas características faciais, espalmado como se fizesse parte do seu corpo e com o braço esquerdo estendido, parecendo segurar-se nas vestes do Franciscano.
Veste hábito franciscano, de túnica longa, com dupla gola, cingido com cinto de laçada dupla, de onde pende apenas o rosário. A ausência do capuz e do cordão com os três nós – que representam os votos perpétuos desta Ordem (obediência, pobreza e santidade) - pode estar relacionado com uma certa ingenuidade do artesão ou, o mais provável, com o propósito de Kimpa Vita em abolir estes símbolos na sua luta continua contra os frades capuchinhos.
Nos finais do seculo XVII Santo António foi reivindicado como emblema de um movimento de reforma religiosa do Antigo Reino do Congo (1684 – 1706) conhecido por “Antonianismo” e liderado pela profetiza Beatriz Kimpa Vita. Natural de Mbanza Congo (a capital do Reino, que se situa na provincia do Zaire actualmente) esta sacerdotisa que tinha pertencido ao culto de Marinda (nganda marinda) e simultaneamente, educada na religião católica, apregoava ter recebido de Deus, por intermédio de Santo António, que tinha tomado posse do seu corpo, a missão de curar o sofrimento deste povo.
Através deste movimento, a sacerdotisa[4] quis intervir no destino do Reino do Congo que se encontrava numa guerra civil, com o propósito de reunificar o reino[5], que dizia ter sido causada pela dominação dos missionários brancos. Segundo Kimpa Vita eles representavam um obstáculo à restauração do reino e do trono que opunha os diferentes chefes locais.
Apropriando-se dos santos católicos importados e transferindo-os para a logica tradicional do culto congolês dos ancestrais, identificou Jesus, Maria, Santo António, entre outros, como antepassados congoleses, explicando que este reino era a verdadeira Terra Santa e que as figuras fundadoras do cristianismo nele tinham nascido.
Sem contestar a autoridade do Papa, Dona Beatriz repudiava o clero local por se encontrar muito distante das necessidades espirituais do povo congolês. Converteu “Tony Malau”, o Santo António congolês, no eixo místico deste amplo movimento, que procurava, simultaneamente, a redenção em vida e a africanização radical de Cristo.
O culto imposto por esta profetisa atinge processos sincréticos que obedecem a ritos, com códigos culturais miscigenados - conceitos católicos foram alterados de uma forma bastante original, implicando uma nova leitura da mensagem cristã – representados simbolicamente nestas pequenas esculturas.
O gancho de suspensão permitia que a mesma fosse pendurada junto ao corpo dos devotos, para maior proteção e pelas suas propriedades terapêuticas.
Eram igualmente utilizadas para recuperar objectos perdidos ou roubados, proteger as embarcações e os passageiros dos naufrágios e ainda as gravidas, das complicações no parto.
Assim, a figura converte-se em santo-amuleto, objecto mágico–religioso, podendo ser considerado uma escultura minkisi [6]. A imagem está gasta e polida, resultado da fricção vigorosa nas áreas enfermas do corpo, esperando a cura para os males.
Numa corrente sincrética, este movimento permitiu estabelecer uma nova concepção do catolicismo: denominado “congolês”, fenómeno de “ressignificação” e africanização desta doutrina.
A escultura congolesa legou à posteridade singelas imagens de Santo António, comumente executadas em madeira, marfim, latão ou bronze - Inv. n.º 1955.9.23, Musée Royal de l’Afrique Centrale, Tervuren; Inv. nº. 1999.295.1, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque; entre outras.
Impõem-se como tesouros notáveis deste movimento Antoniano, esta escultura que apresentamos, assim como uma imagem de “Toni Malau” que se encontra hoje no Museu de Santo António em Lisboa com o inv. n.º MLSA.ESC.0234 e que fez parte do nosso acervo.
Teresa Peralta
Bibliografia:
- Cecile Fromont, The Art of Conversion. Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo, Chapel Hill, N.C. University of North Carolina Press, 2014.
- SANTOS, Eduardo, Religiões de Angola, Lisboa, Junta de Investigações de Angola, 1969.
— SOUZA, Marina de Mello e, “Evangelização e Poder na Região do Congo e Angola: A Incorporação dos Crucifixos por Alguns Chefes Centro Africanos, Séculos XVI e XVII”, in Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico do Antigo Regime, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, U.N.L.
— FRANCO, Anísio, “Santo António (Toni Malau)” in Masterpieces – Pégadas dos Portugueses no Mundo, Porto, ARPAB, 2010.
— THORNTON, John K., “The Development of Na African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491 – 1750”, in Journal of African History, n.º 25, 1984.
— THORNTON, John K., The Kongolese Saint Anthony – Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684 – 1706, USA, Cambridge University Press, 1998.
— VAINFAS, Ronaldo e MELLO e SOUZA, Marina de “Catolização e Poder no Tempo do Tráfico: O Reino do Congo da Conversão Coroada ao Movimento Antoniano, Séculos XV – XVIII”, in Tempo, Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, v. 3, n.º 6, dez/1998.
— WYATT, MacGAFFEY, Religion and Society in Central Africa, Chicago, The University of Chicago Press, 1986.
[1] “Malau” é o plural de “Lau” que se traduz por “boa sorte”.
[2] Santo António nasce em Lisboa e morre em Pádua. Tornou-se no Santo mais popular da Ordem Franciscana depois de São Francisco de Assis.
[3]“Os missionários portugueses introduziram este Santo no Congo, pela primeira vez após a conversão do rei Nzinga-a-Nkuwu (D. João I do Congo) ao catolicismo baptizado em 1491. Em 1595, Santo António era foco de uma confraria de elite e homónimo de uma igreja patrocinada pelos reis do Congo na capital Mbanza Kongo” Cf.: Kongo Christian Art: Cross-Cultural Interaction in the Atlantic World | The Metropolitan Museum of Art (metmuseum.org).
[4] Criada no seio de uma família aristocrática da etnia Congo, Kimpa Vita tinha recebido a iniciação tradicional de Kimpassi (Rito de Passagem de crença tradicional congolesa) para além da educação católica de devoção à Virgem Maria, aos Santos, aos Sacramentos e ao uso do Rosário e dos crucifixos; está documentado que ela conhecia o Pai Nosso, Ave-maria e a Salve Regina. Cf.: Aurélien Mokoko Gampiot, “Kimpa Vita”, in James Crossley and Alastair Lockhart (eds), Critical Dictionary of Apocalyptic and Millenarian Movements, 2021.
[5] Kimpa Vita surgiu num período de caos no reino do Kongo devido aos conflitos internos entre os nobres simpatizantes da ocidentalização do reino e os defensores de instituições tradicionais. Cf.: John K. Thornton, The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and The Antonian Movement, 1684 – 1706, Cambridge University Press, 1988, p. 2.
[6] “minkisi” é o plural de “nkisi” - escultura dos povos bacongo com sentido magico-religioso onde habita um espírito ancestral, com poder de agir nos assuntos do quotidiano.
A integração desta imagem na arte e cultura dos diferentes povos congoleses prende-se com as crenças populares portuguesas e a devoção a ele consagrada. Este Santo desempenha um papel maior na Ordem dos frades Menores, com os quais estavam relacionados os Capuchinhos, congregação que exerceu um papel preponderante na cristianização do Antigo Reino do Congo.
A estatueta, em pendente com gancho no reverso, apresenta-se de vulto perfeito, com características imagéticas da região. Com alguma geometria de formas, a imagem é fundida numa liga de metal, com certo rigor nos detalhes. O crânio é ovoide, macrocéfalo e o facies bem definido, visivelmente de etnia africana: nariz largo, olhos amendoados detonando uma certa exoftalmia, pálpebras salientes, boca de lábios proeminentes, calote calva e orelhas pequenas levemente esboçadas.
Numa atitude afetiva, Santo António envolve o Menino Jesus com o braço esquerdo e, com o direito, segura a cruz latina. O Menino apresenta as mesmas características faciais, espalmado como se fizesse parte do seu corpo e com o braço esquerdo estendido, parecendo segurar-se nas vestes do Franciscano.
Veste hábito franciscano, de túnica longa, com dupla gola, cingido com cinto de laçada dupla, de onde pende apenas o rosário. A ausência do capuz e do cordão com os três nós – que representam os votos perpétuos desta Ordem (obediência, pobreza e santidade) - pode estar relacionado com uma certa ingenuidade do artesão ou, o mais provável, com o propósito de Kimpa Vita em abolir estes símbolos na sua luta continua contra os frades capuchinhos.
Nos finais do seculo XVII Santo António foi reivindicado como emblema de um movimento de reforma religiosa do Antigo Reino do Congo (1684 – 1706) conhecido por “Antonianismo” e liderado pela profetiza Beatriz Kimpa Vita. Natural de Mbanza Congo (a capital do Reino, que se situa na provincia do Zaire actualmente) esta sacerdotisa que tinha pertencido ao culto de Marinda (nganda marinda) e simultaneamente, educada na religião católica, apregoava ter recebido de Deus, por intermédio de Santo António, que tinha tomado posse do seu corpo, a missão de curar o sofrimento deste povo.
Através deste movimento, a sacerdotisa[4] quis intervir no destino do Reino do Congo que se encontrava numa guerra civil, com o propósito de reunificar o reino[5], que dizia ter sido causada pela dominação dos missionários brancos. Segundo Kimpa Vita eles representavam um obstáculo à restauração do reino e do trono que opunha os diferentes chefes locais.
Apropriando-se dos santos católicos importados e transferindo-os para a logica tradicional do culto congolês dos ancestrais, identificou Jesus, Maria, Santo António, entre outros, como antepassados congoleses, explicando que este reino era a verdadeira Terra Santa e que as figuras fundadoras do cristianismo nele tinham nascido.
Sem contestar a autoridade do Papa, Dona Beatriz repudiava o clero local por se encontrar muito distante das necessidades espirituais do povo congolês. Converteu “Tony Malau”, o Santo António congolês, no eixo místico deste amplo movimento, que procurava, simultaneamente, a redenção em vida e a africanização radical de Cristo.
O culto imposto por esta profetisa atinge processos sincréticos que obedecem a ritos, com códigos culturais miscigenados - conceitos católicos foram alterados de uma forma bastante original, implicando uma nova leitura da mensagem cristã – representados simbolicamente nestas pequenas esculturas.
O gancho de suspensão permitia que a mesma fosse pendurada junto ao corpo dos devotos, para maior proteção e pelas suas propriedades terapêuticas.
Eram igualmente utilizadas para recuperar objectos perdidos ou roubados, proteger as embarcações e os passageiros dos naufrágios e ainda as gravidas, das complicações no parto.
Assim, a figura converte-se em santo-amuleto, objecto mágico–religioso, podendo ser considerado uma escultura minkisi [6]. A imagem está gasta e polida, resultado da fricção vigorosa nas áreas enfermas do corpo, esperando a cura para os males.
Numa corrente sincrética, este movimento permitiu estabelecer uma nova concepção do catolicismo: denominado “congolês”, fenómeno de “ressignificação” e africanização desta doutrina.
A escultura congolesa legou à posteridade singelas imagens de Santo António, comumente executadas em madeira, marfim, latão ou bronze - Inv. n.º 1955.9.23, Musée Royal de l’Afrique Centrale, Tervuren; Inv. nº. 1999.295.1, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque; entre outras.
Impõem-se como tesouros notáveis deste movimento Antoniano, esta escultura que apresentamos, assim como uma imagem de “Toni Malau” que se encontra hoje no Museu de Santo António em Lisboa com o inv. n.º MLSA.ESC.0234 e que fez parte do nosso acervo.
Teresa Peralta
Bibliografia:
- Cecile Fromont, The Art of Conversion. Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo, Chapel Hill, N.C. University of North Carolina Press, 2014.
- SANTOS, Eduardo, Religiões de Angola, Lisboa, Junta de Investigações de Angola, 1969.
— SOUZA, Marina de Mello e, “Evangelização e Poder na Região do Congo e Angola: A Incorporação dos Crucifixos por Alguns Chefes Centro Africanos, Séculos XVI e XVII”, in Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico do Antigo Regime, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, U.N.L.
— FRANCO, Anísio, “Santo António (Toni Malau)” in Masterpieces – Pégadas dos Portugueses no Mundo, Porto, ARPAB, 2010.
— THORNTON, John K., “The Development of Na African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491 – 1750”, in Journal of African History, n.º 25, 1984.
— THORNTON, John K., The Kongolese Saint Anthony – Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684 – 1706, USA, Cambridge University Press, 1998.
— VAINFAS, Ronaldo e MELLO e SOUZA, Marina de “Catolização e Poder no Tempo do Tráfico: O Reino do Congo da Conversão Coroada ao Movimento Antoniano, Séculos XV – XVIII”, in Tempo, Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, v. 3, n.º 6, dez/1998.
— WYATT, MacGAFFEY, Religion and Society in Central Africa, Chicago, The University of Chicago Press, 1986.
[1] “Malau” é o plural de “Lau” que se traduz por “boa sorte”.
[2] Santo António nasce em Lisboa e morre em Pádua. Tornou-se no Santo mais popular da Ordem Franciscana depois de São Francisco de Assis.
[3]“Os missionários portugueses introduziram este Santo no Congo, pela primeira vez após a conversão do rei Nzinga-a-Nkuwu (D. João I do Congo) ao catolicismo baptizado em 1491. Em 1595, Santo António era foco de uma confraria de elite e homónimo de uma igreja patrocinada pelos reis do Congo na capital Mbanza Kongo” Cf.: Kongo Christian Art: Cross-Cultural Interaction in the Atlantic World | The Metropolitan Museum of Art (metmuseum.org).
[4] Criada no seio de uma família aristocrática da etnia Congo, Kimpa Vita tinha recebido a iniciação tradicional de Kimpassi (Rito de Passagem de crença tradicional congolesa) para além da educação católica de devoção à Virgem Maria, aos Santos, aos Sacramentos e ao uso do Rosário e dos crucifixos; está documentado que ela conhecia o Pai Nosso, Ave-maria e a Salve Regina. Cf.: Aurélien Mokoko Gampiot, “Kimpa Vita”, in James Crossley and Alastair Lockhart (eds), Critical Dictionary of Apocalyptic and Millenarian Movements, 2021.
[5] Kimpa Vita surgiu num período de caos no reino do Kongo devido aos conflitos internos entre os nobres simpatizantes da ocidentalização do reino e os defensores de instituições tradicionais. Cf.: John K. Thornton, The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and The Antonian Movement, 1684 – 1706, Cambridge University Press, 1988, p. 2.
[6] “minkisi” é o plural de “nkisi” - escultura dos povos bacongo com sentido magico-religioso onde habita um espírito ancestral, com poder de agir nos assuntos do quotidiano.
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