Tabuleiro de Xadrez com as Armas Reais de D. João V , China, séc. XVIII
ébano, madeira ebanizada e osso
2 x 29 x 33 cm
F1115
Magnífico tabuleiro sino-português do século XVIII, de forma retangular, em ébano e marfim, ornamentado com embutidos de decoração incisa e destinado ao jogo de gamão e xadrez/damas.Numa das faces, a do gamão, os quatro quadrantes tem seis casas, em arcos de volta perfeita, separados por receptáculo com moldura recortada em ébano sobre marfim, decorado com elementos vegetalistas, que constitui a barra. Destaca-se, ao centro, um exuberante escudo de Armas Reais, no cruzamento das diagonais traçadas a partir dos vértices do rectângulo, que definem as linhas de força do desenho, ladeado por dois anjos arautos.Cada canto está preenchido com uma tocha flamejante com duas aletas, ornamentadas de enrolamentos em arabesco, que mais parecem borboletas, numa interpretação não totalmente compreendida pelo artesão chinês.O verso, centrado no quadrado do jogo de xadrez ou de damas, tem decoração vegetalista assimétrica, que se desenvolve a partir das arestas, adaptando-se à forma e separada por flor de oito pétalas.É no reinado de D. João V, “O Magnânimo”, que Portugal atingiu o seu máximo esplendor. O escudo das armas reais difunde-se nas grandes “Dobras” a partir de 1724, as maiores moedas de ouro jamais cunhadas em Portugal, seguindo os desenhos do pintor Vieira Lusitano (1689 – 1773).À época, os jogos de mesa ou de tabuleiro eram comuns nas casas de reis e rainhas e ocupavam um lugar importante no lazer de monarcas, cónegos e nobres. Muito apreciadora deste tipo de entretenimento, D. Maria Ana de Áustria (r. 1708 – 1750), mulher do rei D. João V (r. 1706 – 1750), organizava nos seus aposentos diversos passatempos, em que o jogo da “távola”1 ou gamão — que tomou o nome de “Távola Real”, em Itália — marcava presença.Desde o início do século XVI foram estabelecidas relações luso-chinesas, estimuladas pelas trocas comerciais entre portugueses e locais, em portos estratégicos como Malaca, Cantão e Fujian. O estabelecimento em Macau (1554) facilitou o acesso à China continental e foi através deste porto que se promoveu uma produção sino-portuguesa marcada por sincretismos, que associavam técnicas, estilos e temas, resultantes da simbiose artística entre os dois povos.As ligações comerciais e diplomáticas, adequadas à economia mercantilista do Reino de D. João V, assentaram essencialmente nas permutas e encomendas promovidas pelos embaixadores ao serviço do rei. A embaixada enviada em 1725 ao Imperador chinês Yongzheng (1722 – 1735) é um bom exemplo da sua política internacional de ostentação e magnificência. Numa carta ao secretário de Estado, o embaixador Alexandre de Metelo de Sousa e Meneses contou: “Na corte fiz a minha entrada tão estrondosa que entendo não se tenha visto acção tão luzidia em toda a Ásia”2. Na volta o imperador chinês enviava ofertas a D. João V, que consistiam em “40 caixões repletos das “coisas mais estimáveis daquele império”.3A iconografia desta peça sustenta a projeção do Império e do seu monarca, através da representação das armas reais portuguesas, ao tempo de D. João V. O artista evocou a linguagem ornamental europeia, a partir de um estilo minimalista e caligráfico, não atingindo, no entanto, o mimetismo do modelo, estranho à sua própria cultura.A reprodução do escudo segue o debuxo usual das armas deste soberano, com a orla inferior terminada em arco contracurvado (dito francês) preenchido pelos escudetes, cada um carregado de cinco besantes e bordadura completa com sete castelos. Está encimado pela coroa de quatro arcos, que reproduz os florões, mas abdica dos pedúnculos originais. A bandeira pessoal de D. João V está contida em cartela simulando enrolamentos barrocos, suportada e ladeada por dois tenentes, as figuras aladas, símbolo da fama.Na simbiose entre arte portuguesa e autóctone tiveram papel preponderante as gravuras e as colecções de estampas, que serviram a difusão do estilo barroco no oriente e, em particular, as directrizes para a projecção internacional do rei “Magnânimo”, que neste tabuleiro de jogo ressaltam, pela mão de um artesão chinês.A composição é seguramente baseada numa gravura fornecida pelo encomendante, idêntica à que serviu de protótipo às bandeirolas das trombetas e à saia para atabale da Charamela Real (Prop. Museu Nacional dos Coches, Inv. n.º IM 40 e n.º IM 53) e que foram devidamente identificadas e estudadas. O musicólogo Gerhard Doderer supõe terem pertencido à primitiva Banda Real encomendada por D. João V nos anos de 1721 – 23, independentemente de nelas constar a data de 1761, gravada na superfície do pavilhão.Os materiais empregues, ébano e marfim, são oriundos destas longínquas paragens e, na decoração incisa em arabescos vegetalistas, aplicada através de sulcos abertos com formão, idêntico ao buril dos gravadores, reconhecem-se orientações caligráficas autóctones. Assim, os efeitos revelados nos pontos e linhas, cobertos de tinta preta,4 resultam da utilização do traço como forma de expressão que, tal como a energia da pincelada, são característicos da pintura chinesa.Pela originalidade e a qualidade da peça, trata-se sem dúvida alguma, de um exemplo dos mais relevantes e originais nas artes decorativas miscigenadas deste glorioso rei.
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