Santa Geracina (?) Indo-portuguesa , Índia, Goa, séc.XVI / XVII
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1753 g
Raríssima escultura em fina chapa de prata repuxada e cinzelada, obra-prima de uma destacada oficina de ourives de Goa, datável dos inícios de Seiscentos, ou um pouco anterior. Em vulto pleno, esta santa mártir - que sem dúvida segurava na mão esquerda o seu atributo, a palma do martírio em prata fundida e cinzelada, infelizmente hoje perdida - surge-nos representada como uma donzela e cortesã, vestindo saio inteiro à flamenga (de damasco com largo lavrado de folhagens), de decote quadrado, fina gorjeira de gaze de seda, querubim, cinto de fita e largo manto que, cobrindo-lhe os ombros, a envolve como um pano-paló - pano que as cristãs goesas tomaram do vestuário das mulheres hindus. De rosto severo e feições duras, sobressaem os longos cabelos compridos e espiralados que caem sobre as costas (semelhantes aos da imaginária goesa e cingalesa em marfim), com orelhas salientes, como que apostas. As mãos, delicadamente fundidas provavelmente em cera perdida, encaixam no bocal das mangas, onde se vêm as abotoaduras. O trabalho de cinzel é minucioso e notável, sendo a linguagem decorativa de grande erudição, bastante rara em peças goesas mas de virtuosismo comparável às primeiras obras que se conhecem e sobrevivem ainda em Goa. É o caso da caixa para hóstias de raro formato octogonal da Sé de Goa - provavelmente contemporânea desta nossa santa mártir - de fina decoração ao romano, com candelabrae do mais puro estilo renascentista. O exame microscópico permite estabelecer quanto ao cinzelado uma ligação filiar a conhecidas obras goesas, que evidenciam um movimento descontínuo do cinzel em que a segurança da linha é sacrificada pela expressividade do traço, visível em particular nos cabelos. Note-se também que o fundo do damasco, em contraste com a superfície lisa dos motivos de folhagens, foi integralmente puncionado em fond criblé. A origem goesa desta notável escultura é indiscutível, conquanto a erudição do trabalho do cinzel, não apenas pelo tipo de chapa utilizado, de pouca espessura e evidenciando em particular no tardo o costumeiro aproveitamento engenhoso do material com costuras sobrepostas e soldadas (bem visíveis nas radiografias) mas essencialmente pelo tipo de figuração. Os olhos amendoados, as sobrancelhas muito salientes, o nariz fino, a boca pequena, e as orelhas como que soldadas posteriormente (na verdade, repuxadas e cinzeladas), são em tudo semelhantes ao ícone, ou ídolo hindu (murti, ou muhurti em concani, "encarnação" ou "manifestação" da divindade) de vulto perfeito e de braços e mãos articulados, de Devaki Krishna, a mãe de Krishna com o seu menino, que se encontra ao culto no seu Templo em Mashel, ou Marcela, taluka de Mormugão, em Goa. Trata-se de um ídolo processional (utsava murti) usado em festivais e sempre profusamente ornamentado, quer de têxteis ricos e flores, como de jóias oferecidas pelos devotos. Também as feições da nossa santa podem facilmente comparar-se com os da máscara de prata representando Shiva da colecção do Los Angeles County Museum of Art (acc. no. AC1995.16.1), exemplar setecentista da tradição escultórica hindu dos estados do Maharashtra e Karnataka no sudoeste indiano. Os paralelos estilísticos claros que se podem estabelecer com o ídolo de Devaki Krishna de Mashel e com as máscaras Bhuta destas regiões do Decão costeiro, comprovam a produção desta santa mártir por artista hindu versado na arte e tecnologia da produção de ídolos e na sua tratadística própria (shilpa shastras), passada de pais para filhos. Com efeito a produção de máscaras representando divindades hindus é uma das tradições escultóricas mais notáveis do Maharashtra e do Karnataka, onde o território de Goa geograficamente se insere, nas costas do Concão. É provável, dada a qualidade do trabalho da prata, sua erudição ornamental e dimensões - condizentes com uma santa mártir cujo culto seria certamente de grande importância na cidade Goa -, que se trate de uma representação de Santa Geracina, uma das companheiras donzelas de Santa Úrsula (princesa mártir), conhecidas como as Onze Mil Virgens de Colónia. Com efeito, a 14-X-1548 partia da Sé de Goa a cabeça da santa mártir em solene procissão com direcção ao Colégio de São Paulo, sede dos jesuítas na capital do Estado Português da Índia. Havia viajado na arca do jesuíta, e futuro novo reitor em Goa, António Gomes, desde Lisboa a bordo da nau Galega que, acreditou-se então, teria sido salva de naufrágio certo por milagre da santa. Anos mais tarde, António de Noronha, vice-rei de 1550 a 1554, mandou lavrar a charola, ou custodia de prata, em que hoje se guarda a veneravel cabeça. O relicário de Santa Geracina, de fabrico goês, outrora na Sé de Goa, que se conhece apenas por fotografia, tem representadas em alto relêvo Sta. Úrsula, coroada, com bandeira na mão, ladeada de suas companheiras, e, por traz, as caravelas que as transportaram. Curiosamente as donzelas, surgem vestidas precisamente à moda cortesã quinhentista. Iniciava-se então o culto desta santa, para o qual certamente contribuiu a criação em 1552 da Confraria das Onze Mil Virgens. Dada a cronologia dos seus elementos decorativos, aliada ao vestuário com que a santa é representada, um saio flamengo à moda cortesã de Quinhentos, é certo que esta imagem em prata precede em largas dezenas de anos a conhecida e monumental escultura de vulto perfeito, igualmente em prata com alma em madeira, do "Apóstolo das Índias", datada de 1670 e que se encontra na Basílica do Bom Jesus em Velha Goa. Pertencerá então às primeiras obras de ourivesaria de âmbito jesuítico das quais nenhuma se conhecia até hoje. A de São Francisco Xavier, à semelhança da santa mártir, mais do que comparável com escultura goesa em marfim, deve ser analisada à luz da produção local de ídolos hindus. Assim se explica a volumetria da nossa peça, mas também o posicionamento articulado e autónomo dos braços e mãos, bem como o tipo de feição ou as orelhas típicas dos ídolos hindus dos quais se conhecem diversos exemplares ainda ao culto em templos de Goa.
Hugo Miguel Crespo, Jóias da Carreira da Índia (cat.), Lisboa, Museu do Oriente, 2014.
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