Nossa Senhora com o Menino e uma Cruz , Sul da China, c. 1770-1800
Publicações
CRESPO, Hugo M., Arte Cristã Chinesa, Dos Mares do Sul da China à Corte Imperial (1580-1900), Lisboa, São Roque, 2025, pp.138-143.Esta rara e curiosa pintura, representando Nossa Senhora com o Menino e uma Cruz, foi executada no sul da China nas últimas décadas de Setecentos.
Com toda a probabilidade encomendada por um europeu católico, apresenta a figura da Virgem em pé, segurando o Menino Jesus com a mão direita e sustentando a cruz que o Menino agarra, com a esquerda. Nu, apenas parcialmente coberto por panejamentos, e de pé sobre uma mesa, o Menino, enquanto Salvador do Mundo (Salvator Mundi), abençoa com a mão direita enquanto pega na cruz com a esquerda. Num cenário interior, o fundo inclui uma pilastra marmoreada à esquerda e uma sanefa carmesim com cortinas pendendo do alto.
Na China dos inícios do período moderno, uma representação de Nossa Senhora com o Menino enquanto Salvador do Mundo, teria um profundo significado teológico e missionário. A cruz apresenta-se como prefiguração da Paixão, introduzindo de forma subtil a narrativa salvífica do sacrifício de Cristo, um dos pilares da doutrina cristã, enquanto o gesto de bênção reforça a sua autoridade divina. Este símbolo antecipatório enfatiza o propósito redentor da sua encarnação. Do mesmo modo, da presença da Virgem perpassa o tema da compaixão materna, ecoando o respeito chinês pela piedade familiar e tornando a imagem uma ferramenta estratégica para os missionários transmitirem a mensagem universal da salvação de uma forma culturalmente mais acessível.
À exceção dos elementos de segundo plano, cujo efeito é, não apenas decorativos, mas serve também para acrescentar opulência à pintura, esta representação reproduz fielmente [Fig. 1] uma grande gravura a buril (39,9 x 27,8 cm) do pintor e gravador italiano Giovanni Antonio Faldoni (1689-ca. 1770), activo em Veneza, com base numa composição original de Agostino Masucci (1691-1758), pintor italiano do final do Barroco e activo em Roma.[1] Aluno de Andrea Procaccino (1671-1734) e integrante da oficina de Carlo Maratta (1625-1713), Masucci trabalhou para a Casa de Saboia e recebeu encomendas de D. João V de Portugal (r. 1706-1750), tendo criado os modelos para os três principais painéis de mosaico na Capela de São João Batista na Igreja Jesuíta de São Roque, em Lisboa, projectada por Luigi Vanvitelli (1700-1773) e Nicola Salvi (1697-1751).[2] A gravura de Faldoni, que inclui a inscrição latina “Mater Sanctae Spei” (“Mãe da Santa Esperança”), foi publicada entre 1720 e 1768. Embora a inscrição esteja ausente na nossa pintura chinesa, por ela mais se enfatiza o papel de Maria como fonte de esperança na salvação, ligando a sua intercessão materna à confiança da humanidade na missão redentora de Cristo.
Quase com as mesmas dimensões de seu modelo impresso, o que por certo facilitou o processo de cópia, a nossa pintura apresenta algumas diferenças em relação à gravura, fazendo cobrir mais o corpo nu do Menino envolvendo-lhe por completo as coxas, e elevando o decote da Virgem - alterações, tudo aponta, por razões de decoro. O resplendor do Menino foi também omitido.
A origem chinesa da pintura torna-se evidente nas feições um tanto sinizadas de ambas as figuras e, de forma mais vincada, nos elementos decorativos acrescentados às vestes de Nossa Senhora. Entre eles destacamos os bordados dourados nas bainhas do seu costumeiro manto azul e da túnica rosa, que apresentam flores-de-lótus estilizadas, e a decoração floral lavrada multicolorida da sanefa carmesim, com cortinas emoldurando a Virgem à direita da composição. Uma adição um tanto curiosa é a faixa amarela axadrezada da Nossa Senhora, a fazer lembrar a chita coeva. Pormenores decorativos como esses podemos também encontrar em pinturas sob vidro (e espelho) produzidas na mesma época no sul da China para o mercado europeu, concretamente em Guangzhou (Cantão).[3]
Um aspecto incomum desta pintura é o suporte, dado tratar-se de pergaminho, um material que não é tradicionalmente usado na pintura chinesa. É verdade que peles de animal, geralmente de burro ou vaca, são usadas na produção dos tradicionais fantoches para teatro de sombras, feitos com o material mais translúcido, recortado, entalhado, perfurado, e pintado em cores vibrantes, em especial nas províncias de Shandong, Shaanxi e Henan.[4] No entanto, trata-se de produções que encontramos no norte e centro da China. Quanto à nossa pintura, esta escolha inusual do suporte pode representar uma experiência com materiais ocidentais, sugerindo que a pintura pode ter sido realizada num ambiente de forte influência ocidental.
Hugo Miguel Crespo
[1] Um exemplar desta gravura pertence à colecção do British Museum, Londres (inv. 1871,0429.223).
[2] Carlo Stefano Salerno, “A preciosidade da matéria e a «bizarria da arte»: projecto, organização do estaleiro, direcção dos trabalhos, coordenação dos mesteres e encomenda”, in Teresa Leonor M. Vale (ed.), A Capela de São João Batista da Igreja de São Roque. A Encomenda, a obra, as colecções, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda - Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2015, pp. 83-125.
[3] Para a pintura chinesa sob vidro, veja-se Thierry Audric, Chinese Reverse Glass Painting 1720-1820. An Artistic Meeting between China and the West, Berna - Nova Iorque, Peter Lang International Academic Publishers, 2020; e Francine Giese, et al. (eds.), China and the West. Reconsidering Chinese Reverse Glass Painting, Berlim, De Gruyter, 2023.
[4] Quanto aos fantoches do teatro de sombra chinês e seus materiais, veja-se Fan Pen Li Chen, Chinese Shadow Theatre. History, Popular Religion, and Women Warriors, Montreal, McGill-Queen’s University Press, 2007.
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