Pintor chinês desconhecido
Pintada sobre seda com finas cores vivas, a presente pintura representa Santo António de Pádua (1193? -1231), ou Lisboa. O santo é representado ajoelhado segurando o Menino Jesus nos braços, cercado de querubins. Em primeiro plano, à direita, vemos um livro aberto (simbolizando as suas afamadas capacidades como notável pregador, nomeadamente contra a heresia cátara e como primeiro leitor em Teologia da Ordem Franciscana), com lírios brancos (Lilium candidum) nele pousados, um símbolo de pureza normalmente associado à Virgem, mas também de renascimento e do amor espiritual sempre renovado. A proeminência das flores nesta pintura, que florescem no mês da festa do santo, dia 13 de Junho, pode estar relacionada com a circunstância de, a partir dos finais do século XVII, os peregrinos trazerem lírios brancos junto do túmulo do santo em Pádua, uma tradição que levou o papa Leão XIII (r. 1878-1903) a conceder permissão para que os lírios fossem abençoados em homenagem a Santo António. Embora nenhuma correspondência exacta tenha sido possível de encontrar quanto a uma provável fonte visual gravada para a nossa pintura, a sua composição, de natureza europeia, parece derivar de duas gravuras anteriores, de alguma forma combinadas. De uma gravura (fig. 1) do flamengo Alexander Voet, o Velho (1608? -1689), um dos principais gravadores e editores na Antuérpia da segunda metade do século XVII, o pintor tomou a posição do santo ajoelhado e algumas características físicas, nomeadamente a sua cabeça colocada de perfil. De outra gravura (fig. 2), de Michel Corneille, o Novo (1642-1708), o pintor chinês parece ter tomado os gestos tanto do santo como do Menino Jesus, a postura geral da criança e também alguns dos panejamentos. É curioso notar que, ao contrário da gravura original, os panejamentos cobrem totalmente a parte superior do corpo do Menino, acusando um maior decoro. Ambas dos finais do século XVII, estas duas gravuras podem ter sido usadas como base para uma composição impressa posterior com a mesma iconografia que, embora não identificada, poderia ter sido usada como fonte directa para a presente pintura.
O carácter chinês da nossa pintura é evidente não apenas no suporte, materiais e estilo pictórico, do uso arrojado da cor, como também em algumas subtis características iconográficas, nomeadamente na representação de pormenores anatómicos que são tipicamente asiáticos. As mesmas características chinesas podemos encontrar numa semelhante pintura sobre seda recentemente identificada numa colecção portuguesa e adquirida pelo Asian Civilisations Museum, Singapura. Esta representa Nossa Senhora da Conceição e terá sido pintada por artista chinês sobre desenho e composição de Giuseppe Panzi (Pān Tíngzhāng 潘廷璋, 1734-antes de 1812), irmão leigo jesuíta e, à semelhança do padre pintor italiano Giuseppe Castiglione (Láng Shìníng 郎世寧, 1688-1766) - que serviu como artista na corte imperial dos imperadores Kangxi (r. 1661-1722), Yongzheng (r. 1722-1735) e Qianlong (r. 1735-1796) -, um pintor profissional que chegou a Pequim em 1773.[1] A pintura sobre seda, que representa o altar-mor da igreja de São José em Pequim, conhecida por Dong Tang (ou Dōng Táng 東堂, literalmente a “igreja oriental’), foi produzida em 1777 como oferta ao padre Giuseppe Solari (mestre de noviços em Génova).[2] Embora não seja possível identificar com certeza a que igreja católica chinesa estará relacionada a nossa pintura e, no entanto, importante sublinhar que o mesmo contexto histórico-artístico subjaz à criação das suas pinturas, a de Nossa Senhora da Conceição e a do nosso Santo António.[3]
Hugo Miguel Crespo
Centro de História, Universidade de Lisboa
Bibliografia:
ALVES, Jorge M. dos Santos (ed.), Tomás Pereira (1646-1708). Um Jesuíta na China de Kangxi. A Jesuit in Kangxi’s China (cat.), Lisboa, Centro Científico e Cultural de Macau, 2009.
CORSI, Elisabetta, “Pozzo’s Treatise as a Workshop for the Construction of a Sacred Catholic Space in Beijing”, in Richard Bösel, Lydia Salviucci Insolera (eds.), Artifizi della Metafora. Saggi su Andrea Pozzo, Roma, Artemide, 2010, pp. 232-243.
MUSILLO, Marco, “The Qing Patronage of Milanese Art: a Reconsideration on Materiality and Western Art History”, in Yunru Chen (ed.), Portrayals from a Brush Divine. A Special Exhibition on the Tricentennial of Giuseppe Castiglione's Arrival in China (cat.), Taipei, National Palace Museum, 2015, pp. 310-323.
MUSILLO, Marco, The Shining Inheritance. Italian Painters at the Qing Court, 1699-1812, Los Angeles, Getty Research Institute, 2016.
[1] Sobre Castiglione e seus continuadores na corte imperial, veja-se Marco Musillo, The Shining Inheritance. Italian Painters at the Qing Court, 1699-1812, Los Angeles, Getty Research Institute, 2016.
[2] Veja-se Jorge M. dos Santos Alves (ed.), Tomás Pereira (1646-1708). Um Jesuíta na China de Kangxi. A Jesuit in Kangxi’s China (cat.), Lisboa, Centro Científico e Cultural de Macau, 2009, cat. 29, pp. 134-135 (entrada catalográfica de Isabel Murta Pina), e Elisabetta Corsi, “Pozzo’s Treatise as a Workshop for the Construction of a Sacred Catholic Space in Beijing”, in Richard Bösel, Lydia Salviucci Insolera (eds.), Artifizi della Metafora. Saggi su Andrea Pozzo, Roma, Artemide, 2010, pp. 232-243, maxime p. 241.
[3] Veja-se Marco Musillo, “The Qing Patronage of Milanese Art: a Reconsideration on Materiality and Western Art History”, in Yunru Chen (ed.), Portrayals from a Brush Divine. A Special Exhibition on the Tricentennial of Giuseppe Castiglione's Arrival in China (cat.), Taipei, National Palace Museum, 2015, pp. 310-323.
Provenance
Col. particular, PortoPublications
CRESPO, Hugo M., Arte Cristã Chinesa, Dos Mares do Sul da China à Corte Imperial (1580-1900), Lisboa, São Roque, 2025, pp.132-137.Join our mailing list
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