Contador de Torcidos e Tremidos, Portugal, séc. XVII
Magnífico contador da segunda metade do séc. XVII, com dois corpos – caixa paralelepipédica com gavetas e base ou trempe - em carvalho e pau-santo (Dalbergia nigra).
O corpo, faixeado a pau-santo, tem faces e topo ondulados com frisos e molduras de tremidos. Está guarnecido com ferragens de cobre recortadas, cujo cinzelado - num arabesco vazado - transmite luminosidade, o que quebra a monotonia da prumada das gavetas, nesta prestigiada madeira oriunda do Brasil.
É constituído por doze gavetas, que simulam 16 de idênticas dimensões e colocadas simetricamente, com padrão de tremidos verticais e emolduradas com faixa relevada de ondulado saliente e mais apertado, conferindo movimento à peça. Contribuem para a ornamentação de cada gaveta as ferragens, que intercalam um fino rendilhado nos espelhos circulares dos puxadores, com idêntico trabalho nos escudetes ogivais da chave, realçados e de maiores dimensões, ao centro. Perifericamente, a frente da caixa termina em moldura com o mesmo tipo de frisado, que encerra todas as gavetas.
A decoração das ilhargas, de grande sobriedade, tira partido da beleza do veio da madeira escolhida – tal como o topo - centradas numa exuberante gualdra rendilhada, com grande qualidade de manufatura. Cantoneiras rendilhadas de idênticas características, cuja função é, não só estética, mas também de proteção, completam a composição da caixa .
Trempe com o aro avançado, igualmente decorado com tremidos de caneluras verticais, que assenta sobre quatro pernas maciças e torneadas, em pau-santo, tal como os travejamentos.
Embora parte do fascínio deste móvel resida nas gavetas, o horror vacui do trabalho de torno - bolachas sobrepostas, de diferentes diâmetros e estrangulamentos vincados, interrompidos por cubos de interseção das travessas que terminam em pés em bola - contribui indiscutivelmente para a sua beleza, ditando um carácter dramático e de grande exuberância. Tal como afirma Reynaldo dos Santos, “os contadores portugueses representam só por si modelos de obras de torno de notáveis recursos”.[1]
O termo “contador” designava originalmente uma caixa com gavetas, destinada a armazenar objetos ou documentos relacionados com a contabilidade, que era colocada em cima de uma mesa ou estrado. A partir do séc. XVII foi incorporada mesa de suporte – a trempe[2] - sendo designado comummente por cabinet, na Europa.
É a partir dessa altura que o contador português adquire um estilo muito próprio, que o diferencia dos congéneres europeus, com trempe constituída por num conjunto de pernas e travessas torneadas, de estrangulamentos muito vincados, semelhantes às das mesas-bufete, embora com alguma influência holandesa no uso de tremidos, torcidos e espinhados.[3]
Fabricado na segunda metade do séc. XVII, este móvel-contador insere-se no designado Estilo Nacional ou Primeiro Barroco, onde os tremidos ou molduras ondulantes irão constituir “um verdadeiro culto decorativo”.[4] O trabalho de torneados, onde se incluem as bases dos contadores, trabalhados com bolachas, discos, anéis e bolbos com estrangulamentos, criando uma interessante sensação de movimento, enriqueceu o mobiliário produzido neste período do “estilo nacional lusitano”.[5] O seu verdadeiro carácter residia na forma como se extraíam as potencialidades plásticas do trabalho decorativo do pau-santo, incluindo a aplicação de elementos de latão, cujo brilhante rendilhado evocava nítida influência islâmica e hindu.[6]
Os contadores produzidos neste estilo são móveis de luxo, contrastando a exuberante decoração do metal de influência longínqua, com o tom escuro e quente desta madeira exótica de grande qualidade proveniente do Brasil, trabalhada com notável vigor. De execução técnica excecional, os contadores atingem o seu apogeu no séc. XVII, sempre associados a proprietários de elevados recursos económicos e de elevado estatuto social.[7]
Leonor Liz Amaral
BIBLIOGRAFIA
FREIRE, Fernanda Castro; PEDROSO, Graça; HENRIQUES, Raquel Pereira, Mobiliário, Móveis de Conter, Pousar e de Aparato, Vol. II, Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva, Museu-Escola de Artes Decorativas Portuguesas, 2002.
MARROCANO, João Henrique, “Mobiliário português de estilo nacional: o bufete forma, origem e identidade”, Res Mobilis, 10(12), 2021, pp.44–74.
MEDEIROS, Maria do Céu, O Mobiliário na Pintura do séc. XVII em Portugal, Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2015.
PROENÇA, José António, Mobiliário da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, IPM, 2002.
SANTOS, Reynaldo dos, Oito séculos de Arte Portuguesa - História e Espírito, Vol. III, Lisboa, Editorial Notícias, s.d.
[1] SANTOS, Reynaldo dos, s.d., vol. III, p. 442.
[2] https://pacodosduques.gov.pt/monumentos/paco-dos-duques/colecao/mobiliario/contador-pd0442/
[3] MARROCANO, João H., 2021, pp.58-59.
[4] Robert Smith in MEDEIROS, M. Céu, 2015, p. 30; R. Smith in PROENÇA, J. A., 2002, p. 19, nota r. 1.
[5] PROENÇA, José António, 2002, p. 19.
[6] MARROCANO, João H., pp. 56-57.
[7] MEDEIROS, 2015, p. 68.
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