Prato de Aparato , Lisboa, 1620-1640
Importante prato de aparato com covo pouco acentuado decorado a azul-cobalto sobre esmalte estanífero branco.
O centro está definido por uma linha de chavetas com figura feminina desnuda no seu interior, uma alegoria à divindade romana Fortuna. A deusa segura na mão direita uma vela enfunada - que descreve meia-lua pela acção do vento - de onde pendem três cordas terminadas em borla, uma das quais segura na outra mão; Ergue-se sobre um globo alado, de asas abertas e simetricamente colocadas, com a perna esquerda fletida.
A aba, que se prolonga pelo covo, é formada por seis reservas preenchidas alternadamente por ramos de boninas e corolas de crisântemos, separadas por colunelos com laços e selos chineses.
O tardoz está dividido em sete compartimentos preenchidos por registo a azul, que sugere uma pétala. Colada no fundo encontra-se uma etiqueta da Exposição de Cerâmica Ulissiponense, Lisboa 1936[1] e o nº 158.
Esta peça de aparato é um belo exemplo da simbiose entre a cultura chinesa e a europeia. Por um lado evoca a porcelana Kraak do período Wanli, na decoração a azul-cobalto sobre esmalte estanífero aliada à representação e distribuição dos elementos vegetalistas e simbólicos inspirados na porcelana chinesa, nomeadamente na aba.
Por outro, reconhece-se inspiração europeia sobretudo na figura principal adaptada à alegoria da “Fortuna” – deusa romana do destino e da sorte - que se encontra mimetizada no sentido de contrapposto, uma representação adoptada pela escultura grega clássica. Esta imagem metafórica teve profusa representação nas fontes gravadas[2] e nas artes a partir do Renascimento, tendo sido mesmo incluída no brasão heráldico da cidade de Glückstadt, situada a cerca de 60 Km de Hamburgo, e traduzida literalmente por “cidade da Fortuna” ou “cidade da Sorte”.
Fundada em 1617, pelo duque de Holstein - rei Christian IV da Dinamarca[3] - Glückstadt foi criada com o intuito de se tornar um grande porto comercial, de forma a concorrer com Hamburgo, na época o principal entreposto comercial para a faiança portuguesa. Conforme documentação oficial, este rei endereçou convites a vários judeus sefarditas de origem portuguesa oferecendo-lhes regalias para se instalarem nesta cidade, a partir de 1619 [4].
Entre estes destacou-se Moise Benedicktus, que chegou a Glückstadt em 1620[5]. Segundo o historiador alemão Ulrich Bauche, este judeu – o principal comerciante local de origem portuguesa da primeira metade do século XVII, e aquele que melhor conhecia a manufactura desta faiança – foi o principal importador deste tipo de artefactos, tendo encomendado inúmeras peças a serem executadas segundo desenho por ele fornecido aos oleiros lusos, sobretudo com a representação de brasões e a inscrição de datas e legendas referentes a lendas de famílias autóctones [6].
Erroneamente designado por vezes, e ainda hoje, como “faiança de Hamburgo”, este prato é um exemplar importante que reflecte a qualidade e a liberdade criativa das faianças “fabricadas no Reino Lusitano” em “porcelana contrafeita da China”[7], que a Liga Hanseática tanto valorizava.
A alegoria da “Fortuna” está igualmente representada em várias outras peças de faiança portuguesa do seculo XVII, entre as quais se destacam um pichel na colecção Mário Roque, outro datado de 1640 que faz parte da colecção do Kunst und Gewerbe Museum de Hamburgo (inv.1879.322) e ainda dois pratos no MNAA, em Lisboa, inv. 2391 e inv. 2390.
[1] Vd.: Catálogo da Exposição de Cerâmica Ulissiponense, C.M. de Lisboa, 1936, p. 14, cat. 8. Onde vigora como propriedade do Sr. Augusto Cardoso Pinto.
[2] A “Fortuna Marítima” estará na base desta versão.
[3] Em 1649 o filho deste rei, e seu sucessor, Frederico da Dinamarca, transferiu a sede da administração Holstein para Glückstadt, passando o ducado a ser conhecido por Holstein-Glücksdat. Esta cidade permaneceu na posse da coroa dinamarquesa até 1864. Hoje pertence à Alemanha e ao estado Schleswig – Holstein.
[4] Alexandre Nobre Pais, Fabricado no Reino Lusitano o que antes nos vendeu tão caro a China: a produção de Faiança em Lisboa, entre os reinados de Filipe II e D. João V, Dissertação de doutoramento em Artes Decorativas, Universidade Católica, Escola das Artes, Porto, 2012, p. 418.
[5] IDEM, Ibidem.
[6] Ulrich Bauche, Lisbon - Hamburg: Faience imports for the north, 1996, p. 27.
[7] Inscrições apostas ao Arco dos Oleiros, em 1619, por altura da Entrada de Sua Majestade o rei Filipe II de Portugal (r. 1598 – 1621). Cf.: João Baptista Lavanha, Viagem da Catholica Real Magestade del Rey D. Filipe II, N.S. ao Reyno de Portugal (…), Madrid, 1622, p. 29v-30.
Join our mailing list
* denotes required fields
We will process the personal data you have supplied in accordance with our privacy policy (available on request). You can unsubscribe or change your preferences at any time by clicking the link in our emails.