Baú

Nº de referência da peça: 
F1193

Baú
Japão; Período Edo, c. 1630-1650
Cedro japonês (Cryptomeria japonica) lacado de negro, decorado a ouro, embutidos de madrepérola, e polvilhado de dentículos de pele de raia; ferragens de cobre dourado
Dim.: 29,6 x 46,0 x 25,3 cm
F1193

Raro baú namban, do Período Edo, produzido na primeira metade do século XVII para o mercado de exportação. De formato de paralelepípedo retangular, termina numa tampa convexa articulada com dobradiças. É construído por cedro japonês (Cryptomeria japonica) lacado (urushi) a negro, decorado com painéis de pele de raia (same), laca dourada (maki-e) e incrustações de madrepérola (interior lustroso de moluscos como Turbo ou Trochus, mencionado em japonês como raden). A sua superfície encontra-se dividida em treze painéis decorativos de diferentes formas e dimensões.
A face dianteira do baú encontra-se ornamentada com três painéis verticais, em tapete, preenchidos por dentículos dérmicos de raia (escamas placóides ) polvilhados. Estes apresentam-se emoldurados por duas finas cercaduras de embutidos de madrepérola, contornadas a laca dourada e preta. O conjunto dos três painéis é circunscrito por dois filamentos de motivos geométricos, onde uma sequência de três triângulos justapostos delineados a laca dourada sobre um fundo negro, são separados por triláteros incrustados em madrepérola. O painel central de dentículos dérmicos de raia revela-se ladeado por uma decoração análoga, todavia composta por faixas de padrão geométrico enxaquetado (ishidatami). Os motivos decorativos são semelhantes nas laterias e traseira do baú, sendo que nesta última o painel central encontra-se adornado lateralmente por um único filete de incrustações quadradas de madrepérola unidas pelas suas arestas, onde um delicado traçado a laca dourada contorna os embutidos. A tampa abaulada exibe uma decoração exterior semelhante à face dianteira da peça. No seu interior, a ornamentação a laca dourada de cariz naturalista, contra o restante interior lacado a preto, apresenta exuberantes ramos de glicínias ou fuji (Wisteria floribunda).
A maioria desta tipologia de mobiliário possuía uma decoração mais meticulosa na sua frente e topo. Todavia, a ornamentação apresentada no presente baú evidencia uma incomum preocupação acrescida na sua composição, visto existir uma decoração similar em todas as suas faces.
Em cobre dourado, as pegas de transporte são em argola achatada com uma flor de cerejeira (sakura) central ladeada por enrolamentos vegetalistas. O espelho da fechadura (aimeita) ovoide é suportado por duas peónias afrontadas, com umo diospireiro ou kaki (Diospyros kaki) em fruto, a brotar por trás de rochedos, num fundo puncionado conhecido por “ovas de peixe” (nanakoji). Esta apresenta-se emoldurada por enrolamentos fitomórficos com terminações em flores-de-lis. A parte superior do espelho exibe uma peónia encimada por uma cabeça de ceptro nyoi . As cantoneiras, de metal semelhante, encontram-se cinzeladas com melões ou uri (Cucumis melo) reservados num fundo com padrão de pontos ordenados (nanakoji), semelhante à fechadura. As dobradiças desenham dois crisântemos simetricamente afrontados, encimados por uma cabeça de ceptro nyoi. Por fim, o interior releva duas argolas (no tampo e frente) que permitiam manter aberto o baú através de corrente metálica, hoje perdida .
O presente baú é um exemplo da introdução de um material de origem animal (pele de tubarão ou raia) como elemento decorativo pertencendo ao grupo de peças de mobiliário lacado denominado de samegawa namban. Poderia ser utilizada a totalidade da pele ou apenas os seus dentículos extraídos após o apodrecimento da matéria dérmica à qual se encontram unidos. Este último processo é aqui utilizado sendo os dentículos polvilhados no corpo e tampa em madeira da peça e fixados através de várias camadas de laca. Esta superfície seria posteriormente lixada e polida com pedra-pomes até os dentículos brancos polidos criarem um padrão circular na superfície lacada a preto. A técnica de aplicação da laca sobre os dentículos dérmicos é conhecida por samegawa-nuri. Peças cobertas de polvilhado de pele de raia são raras e incluem ventós, escritórios, contadores de duas portas, e em especial baús e cofres de tampo abaulado como o presente.
Esta peça é datável de entre finais de 1630 e meados de 1650, período considerado de transição, onde a utilização de madrepérola é diminuída em detrimento de margens pintadas, e a utilização da pele de raia é predominante . Tanto os portugueses como os holandeses importaram esta tipologia de peças. O vocábulo same é encontrado pela primeira vez em 1603, no Vocabulário da Lingoa de Iapam da autoria de missionários jesuítas que residiam no Japão, descrito como pele de raia utilizada para a decoração de punhos e bainhas de espada. Contudo este terá sido documentado pela primeira vez, associado ao mobiliário lacado namban, em listagens de inventário da V.O.C. em 1634. Deste modo, podemos assumir a raridade desta peça, contemporânea de um período em constante evolução.
Um exemplar deste tipo, com painéis de dentículos dérmicos de raia polvilhados, divididos por cercaduras geométricas de embutidos de madrepérola, e dimensão aproximada (22,5 x 34,5 x 18,5 cm) pertence ao Ashmolean Museum, Oxford (inv. 1985.53).

Namban-jin, o vocábulo de origem chinesa, surge originalmente como forma de identificar mercadores, missionários e marinheiros europeus após a sua chegada ao Japão, entre os séculos XVI e XVII. O termo namban vai ser igualmente utilizado para designar o grupo de peças produzidas no Japão especificamente para exportação, motivadas pela intensa relação cultural e artística originalmente estabelecida entre Portugal e o Japão durante quase um século. Começam a ser fabricadas a partir da segunda metade do século XVI, refletindo a miscigenação de culturas, onde as técnicas, materiais e motivos decorativos japoneses se unem aos estilos e formatos europeus .
Uma das influências mais claras da presença portuguesa no Japão manifesta-se na introdução de formatos de mobiliário de características europeias, elaborados pelos artesãos japoneses exclusivamente para o mercado de exportação. As variadas formas de arquetas e baús retangulares lacados, com tampa abaulada e dobradiças traseiras em cobre dourado produzidas para este mercado, aparecem registadas em documentos desde os finais do século XVI revelando-se como um dos formatos manufaturados mais antigos. A forma abaulada da tampa não era conhecida no Oriente tendo a sua origem nas arcas de viagem europeias quinhentistas, cujo abaulamento permitia a salvaguarda da estrutura da peça aquando do derrame de água sobre a mesma, bastante comum em viagens marítimas. Eram referidos pelos artesãos nipónicos como kamaboko-bako devido à sua semelhança formal com o kamaboko, uma salsicha tradicional do Japão confecionada a partir da carne de vários peixes. Já a divisão da ornamentação também se encontra patente nestas e na presente peça, onde os painéis verticais de pele de raia são separados por faixas com decoração geométrica de madrepérola, com o intuito de imitar as ferragens de ferro dos baús e arcas de couro que serviam de reforço nos modelos quinhentistas europeus .
Este tipo de peças de mobiliário eram adornadas com uma substância singular: a laca. Bastante diferente de qualquer material no Ocidente, a laca era muito admirada pela sua dureza, brilho e potencial decorativo. No seu ponto de partida a laca é criada a partir da resina da “árvore da laca” (da espécie Rhus), indígena do sudeste asiático, de nações como o Japão, Camboja e Vietname, onde são incorporados variados óleos e resinas para ampliar a quantidade utilizável de laca e igualmente adicionados diversos pigmentos para produzir uma decoração colorida. A exposição ao oxigénio e à humidade endurece a laca, tornando-a numa superfície resistente à água, calor e a alguns ácidos, ideal como revestimento protetor da peça que envolve. Como é uma substância bastante viscosa e pegajosa, tem a capacidade de facilmente ser convertida em cola, sendo ideal para a incrustação de madrepérola .
O comércio organizado de peças lacadas para a Europa terá somente começado após a chegada dos portugueses a Tanegashima, Japão em 1543. As primeiras peças em laca terão sido encomendas de missionários jesuítas, mas a maioria foi exportada para a Europa com o intuito de ofertar a nobreza e a realeza com presentes exóticos e opulentos, como indica a documentação. Em 1571, Nagasaki tornou-se o porto oficial para as trocas comerciais entre as duas nações, permitindo a monopolização deste mercado pelos portugueses até c. 1600, sendo unicamente partilhado com o Império chinês. Os barcos portugueses partiam de Macau para Nagasaki, suportando posteriormente uma viagem para Portugal que poderia durar três anos . Após este período, os holandeses iniciaram as suas relações comerciais com o Japão, assumindo o controlo do monopólio comercial entre a Europa e o Japão a partir de meados de 1630. A exportação de peças lacadas japonesas pelos portugueses foi completamente interrompida em 1639 com a expulsão destes do território japonês .
Bibliografia:
— BAIRD, Merrily, Symbols of Japan, Tematic Motifs in Art and Design, Nova Iorque: Rizooli International Publications, Inc., 2001
— BEMVENUTI, Marlise & FISCHER, Luciano, Peixes: Morfologia e Adaptações, Rio Grande: FURG, Instituto de Oceanografia, Universidade Federal do Rio Grande, 2010
― BOURNE, Jonathan et al., LACQUER - An International History and Collector's Guide, Londres: Bracken Books, 1989
— IMPEY Olivier & CHRISTIAAN Jörg, Japanese Export Lacquer 1580 – 1850, Amsterdão: Hotei Publishing, 2005
― LEIDY, Denise Patry, Mother-of-pearl: A Tradition in Asian Lacquer, Nova Iorque: Metropolitan Museum of Art, 2006
― PINTO, Maria Helena Mendes, Lacas Namban em Portugal. Presença portuguesa no Japão, Lisboa, Edições Inapa, 1990

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