Nossa Senhora com o Menino (Nossa Senhora da Graça), China, Guangzhou, c. 1770-1800
Pintura s/ vidro
30.0 x 23.0 cm; 35.0 x 28.0 cm (c/ moldura)
D1977
Esta pintura sob vidro, representando Nossa Senhora com o Menino (Nossa Senhora da Graça), foi produzida no sul da China, provavelmente em Guangzhou, mais conhecido no Ocidente como Cantão (na província de Guangdong), nas últimas décadas do século XVIII. Uma inscrição em letras maiúsculas (em ouro), escrita em português, lê-se: “N. S. DA GRASA”.
Embora as obras chinesas com inscrições em português tenham sido tradicionalmente identificadas como produzidas em Macau, não há evidência da existência de pintores sob vidro, activos nesta cidade portuária sob domínio português. É mais provável que o cliente europeu, talvez português, tenha fornecido a fonte visual para a composição - junto com a inscrição - para ser pintada em Cantão, um reconhecido centro de produção deste tipo de obras, numa das muitas oficinas de pintura aí documentadas.
Dada a inscrição, é possível que esta pintura tenha sido destinada à igreja do convento dos agostinhos em Macau, originalmente conhecida como Igreja de Nossa Senhora da Graça e hoje chamada Igreja de Santo Agostinho. Fundada por agostinhos espanhóis e transferida para o ramo português da ordem em 1589, a igreja, que ainda hoje sobrevive, começou a ser construída em 1591. Embora grande parte do edifício tenha sido concluída no século XVII, foi em grande parte destruída por um incêndio em 1872.
Ao contrário das técnicas mais usuais, esta obra foi pintada no verso de uma placa de vidro, provavelmente importada da Europa. Enquanto o observador vê a imagem através da superfície polida e transparente do vidro, o artista teve de trabalhar em exclusivo a partir do reverso. Este processo exigia começar pelos detalhes mais pequenos e realces antes de aplicar as áreas de cor de maior dimensão, em regra copiando uma composição pré-definida. O processo é ilustrado numa representação coeva de um pintor sob vidro chinês, parte de um conjunto de cem pinturas a aguarela e tinta sobre papel, de ca. 1790, que retratam diferentes ofícios e ocupações em Cantão. Vemos o artista sentado a uma mesa, onde a placa de vidro, numa moldura de madeira, está disposta na horizontal. Ao lado encontram-se pincéis de vários tamanhos, um tinteiro de porcelana e uma paleta do mesmo material. À frente do pintor, na vertical, está uma gravura (talvez europeia), que ele copia a cores no verso do vidro. A mão do pintor apoia-se numa tira estreita de madeira sobre a moldura, permitindo-lhe controlar o pincel sem danificar as camadas recém-pintadas. Conhecida por bōlí bèihuà (“pintura sobre o verso de uma placa de vidro”) ou jìnghuà (“pintura sobre espelho”), a pintura chinesa sob vidro inclui obras feitas tanto no verso de simples placas de vidro como em espelhos. O processo envolvia raspar a amálgama de estanho e mercúrio aplicada no verso do vidro do espelho e preencher os espaços em reserva com pigmentos.
Nesta pintura, apenas partes do fundo, que representam o céu, não foram pintadas, ao passo que o resto surge coberto por pigmentos, seguindo a técnica conhecida por liúbái (“deixar o vazio”). Este raro exemplar de iconografia cristã foi pintado no estilo tradicional gōngbǐ (“pincelada fina”), caracterizado por camadas de pigmento brilhantes e vivas, aplicadas com grande precisão.
Embora representações da Virgem com o Menino, assim como da Sagrada Família, se tenham tornado cada vez mais íntimas e realistas na representação do amor materno, é raro encontrar gravuras do Período Moderno em que o Menino Jesus abrace a mãe acariciando-lhe o rosto. Este gesto deriva de representações da Nossa Senhora da Graça, em especial da muito venerada Virgem de Cambrai (Notre-Dame de Grâce). Esta obra ítalo-bizantina, de ca. 1340 replicando o ícone da Virgem Eleousa (Nossa Senhora da Ternura ou da Compaixão), foi levada para Cambrai em 1451, quando se acreditava ser uma obra original de S. Lucas. A iconografia, que mostra o Menino Jesus encostado à face da mãe, exerceu grande influência no Ocidente Latino.
Um exemplo notável, que parece ter inspirado a nossa pintura sob vidro - ou a desconhecida fonte impressa que lhe serviu de base - é uma gravura [Fig. 1] de Schelte Adamsz. Bolswert (ca. 1586-1659) a partir de uma composição original de Peter Paul Rubens (1577-1640). Criada na primeira metade do século XVII e parte de uma série de noventa gravuras devocionais (Vélins) baseadas em desenhos de Rubens, a sua pequena dimensão (13,3 x 9,1 cm) facilitou por certo a sua difusão global. Embora a nossa pintura sob vidro siga a composição de Rubens, afasta-se da composição original num pormenor muito significativo: a adição de um globo, sobre o qual o Menino coloca o pé direito, simbolizando o seu papel como Salvator Mundi (Salvador do Mundo). O orbe, perfurado por serpentes que representam o mal, sublinha o triunfo sobre o pecado e o domínio do mundo. É provável que a pose do Menino Jesus a pisar o globo replique a de uma gravura de John Faber, o Jovem (ca. 1684-1756), baseada numa composição de Robert Browne (ca. 1672-1753), publicada em meados do século XVIII.
A datação de pinturas chinesas sob vidro é em extremos difícil dada a ausência de história custodial e das molduras originais. Embora os primeiros exemplares de “espelhos pintados” chineses tenham começado a chegar à Europa na década de 1730, com um pico de importações documentado entre 1740 e 1770, o estilo derivativo e a qualidade desta pintura sugerem uma datação entre 1770 e 1800.
Hugo Miguel Crespo
Embora as obras chinesas com inscrições em português tenham sido tradicionalmente identificadas como produzidas em Macau, não há evidência da existência de pintores sob vidro, activos nesta cidade portuária sob domínio português. É mais provável que o cliente europeu, talvez português, tenha fornecido a fonte visual para a composição - junto com a inscrição - para ser pintada em Cantão, um reconhecido centro de produção deste tipo de obras, numa das muitas oficinas de pintura aí documentadas.
Dada a inscrição, é possível que esta pintura tenha sido destinada à igreja do convento dos agostinhos em Macau, originalmente conhecida como Igreja de Nossa Senhora da Graça e hoje chamada Igreja de Santo Agostinho. Fundada por agostinhos espanhóis e transferida para o ramo português da ordem em 1589, a igreja, que ainda hoje sobrevive, começou a ser construída em 1591. Embora grande parte do edifício tenha sido concluída no século XVII, foi em grande parte destruída por um incêndio em 1872.
Ao contrário das técnicas mais usuais, esta obra foi pintada no verso de uma placa de vidro, provavelmente importada da Europa. Enquanto o observador vê a imagem através da superfície polida e transparente do vidro, o artista teve de trabalhar em exclusivo a partir do reverso. Este processo exigia começar pelos detalhes mais pequenos e realces antes de aplicar as áreas de cor de maior dimensão, em regra copiando uma composição pré-definida. O processo é ilustrado numa representação coeva de um pintor sob vidro chinês, parte de um conjunto de cem pinturas a aguarela e tinta sobre papel, de ca. 1790, que retratam diferentes ofícios e ocupações em Cantão. Vemos o artista sentado a uma mesa, onde a placa de vidro, numa moldura de madeira, está disposta na horizontal. Ao lado encontram-se pincéis de vários tamanhos, um tinteiro de porcelana e uma paleta do mesmo material. À frente do pintor, na vertical, está uma gravura (talvez europeia), que ele copia a cores no verso do vidro. A mão do pintor apoia-se numa tira estreita de madeira sobre a moldura, permitindo-lhe controlar o pincel sem danificar as camadas recém-pintadas. Conhecida por bōlí bèihuà (“pintura sobre o verso de uma placa de vidro”) ou jìnghuà (“pintura sobre espelho”), a pintura chinesa sob vidro inclui obras feitas tanto no verso de simples placas de vidro como em espelhos. O processo envolvia raspar a amálgama de estanho e mercúrio aplicada no verso do vidro do espelho e preencher os espaços em reserva com pigmentos.
Nesta pintura, apenas partes do fundo, que representam o céu, não foram pintadas, ao passo que o resto surge coberto por pigmentos, seguindo a técnica conhecida por liúbái (“deixar o vazio”). Este raro exemplar de iconografia cristã foi pintado no estilo tradicional gōngbǐ (“pincelada fina”), caracterizado por camadas de pigmento brilhantes e vivas, aplicadas com grande precisão.
Embora representações da Virgem com o Menino, assim como da Sagrada Família, se tenham tornado cada vez mais íntimas e realistas na representação do amor materno, é raro encontrar gravuras do Período Moderno em que o Menino Jesus abrace a mãe acariciando-lhe o rosto. Este gesto deriva de representações da Nossa Senhora da Graça, em especial da muito venerada Virgem de Cambrai (Notre-Dame de Grâce). Esta obra ítalo-bizantina, de ca. 1340 replicando o ícone da Virgem Eleousa (Nossa Senhora da Ternura ou da Compaixão), foi levada para Cambrai em 1451, quando se acreditava ser uma obra original de S. Lucas. A iconografia, que mostra o Menino Jesus encostado à face da mãe, exerceu grande influência no Ocidente Latino.
Um exemplo notável, que parece ter inspirado a nossa pintura sob vidro - ou a desconhecida fonte impressa que lhe serviu de base - é uma gravura [Fig. 1] de Schelte Adamsz. Bolswert (ca. 1586-1659) a partir de uma composição original de Peter Paul Rubens (1577-1640). Criada na primeira metade do século XVII e parte de uma série de noventa gravuras devocionais (Vélins) baseadas em desenhos de Rubens, a sua pequena dimensão (13,3 x 9,1 cm) facilitou por certo a sua difusão global. Embora a nossa pintura sob vidro siga a composição de Rubens, afasta-se da composição original num pormenor muito significativo: a adição de um globo, sobre o qual o Menino coloca o pé direito, simbolizando o seu papel como Salvator Mundi (Salvador do Mundo). O orbe, perfurado por serpentes que representam o mal, sublinha o triunfo sobre o pecado e o domínio do mundo. É provável que a pose do Menino Jesus a pisar o globo replique a de uma gravura de John Faber, o Jovem (ca. 1684-1756), baseada numa composição de Robert Browne (ca. 1672-1753), publicada em meados do século XVIII.
A datação de pinturas chinesas sob vidro é em extremos difícil dada a ausência de história custodial e das molduras originais. Embora os primeiros exemplares de “espelhos pintados” chineses tenham começado a chegar à Europa na década de 1730, com um pico de importações documentado entre 1740 e 1770, o estilo derivativo e a qualidade desta pintura sugerem uma datação entre 1770 e 1800.
Hugo Miguel Crespo
Publicações
CRESPO, Hugo M., Arte Cristã Chinesa, Dos Mares do Sul da China à Corte Imperial (1580-1900), Lisboa, São Roque, 2025, pp.144-149.Receba as novidades!
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