Sagrada Família Caminhante Indo-portuguesa , séc. XVII-XVIII
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Este raro grupo escultórico indo-português, originário de Goa, entalhado em marfim de elefante, representa a Sagrada Família no seu regresso do Egipto, um episódio conhecido como O Regresso do Egipto ou O Regresso da Família de Jesus a Nazaré.
Este evento na vida inicial de Jesus surge narrado nos evangelhos canónicos. Mateus descreve a fuga de José, Maria e Jesus para o Egipto, para escapar à matança dos inocentes em Belém, ordenada por Herodes, o Grande. Em Mateus (2:23), o regresso a Nazaré é descrito como o cumprimento da palavra profética: “Ele será chamado Nazareno”. Este evento simboliza a orientação e protecção de Deus a Jesus, assegurando a sua sobrevivência para cumprir o papel messiânico a que estava destinado, fazendo ao mesmo tempo referência à profecia de Oseias (11:1): “e chamei do Egipto o meu filho”. Este episódio quadrava-se bem na ênfase da Igreja Católica quanto à devoção, obediência e valores da família promovidos pela Contra Reforma. Ressoava de forma profunda não apenas, no contexto ibérico de piedade individual e devoção privada, simbolizando refúgio espiritual, protecção divina e o triunfo da fé, mas também no trabalho missionário na Ásia de influência portuguesa e espanhola.
As figuras entalhadas do Menino Jesus ao centro, flanqueado à esquerda pela Virgem e à direita por S. José, são representadas numa caminhada alegre, sendo cada figura esculpida individualmente com grande minúcia. Na origem, é provável que estivessem posicionadas mais próximas, com as mãos quase se tocando num gesto suave, mas vemo-las agora numa base de madeira entalhada—provavelmente uma substituição da base original de marfim—com policromia naturalista da segunda metade do século XVIII. Vestidas como peregrinos com cajados e cabaças para água, as figuras apresentam vestes fluidas e diáfanas. Replicam com toda a probabilidade gravuras devocionais europeias contemporâneas, como uma de Schelte Adamsz. Bolswert (†1659), baseada num desenho de Peter Paul Rubens (1577-1640), publicada por volta de 1630-1645, onde a Virgem é representada em pose idêntica, levantando a mão ao peito.
O presente grupo escultórico da Sagrada Família, juntamente com outros deste tema, apresenta fortes afinidades com as esculturas barrocas ibéricas produzidas em Portugal e Espanha nos séculos XVII e XVIII. Tais esculturas, entalhadas em madeira ou modeladas em barro e cozidas, apresentam no geral policromia vibrante e decoração a ouro. Um excelente exemplo, de grandes dimensões e do século XVIII, em madeira entalhada e policromada, pertence ao Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra (inv. 1953). Outro, um pouco anterior, serve como peça central de um grande retábulo-relicário entalhado e dourado da Sagrada Família no transepto da Sé de Coimbra (a Sé Nova), anteriormente a igreja do colégio jesuíta.[1] Junto com o retábulo que o emoldura, o grupo escultórico—comparável ao nosso grupo da Sagrada Família em marfim—data de entre os finais do século XVII aos inícios de Setecentos.
Esta iconografia foi muito valorizada e procurada em Portugal durante a Contra Reforma, como se torna evidente pelos muitos exemplares sobreviventes em diversos suportes. O Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto (inv. 1201 Pin MNSR), possui uma pintura devocional sobre cobre (66,0 x 83,5 cm) deste tema, produzida pelo pintor de Antuérpia Simon de Vos (1603-1676) em 1664.[2]
Grupos escultóricos completos da Sagrada Família em marfim em Goa, tanto para o mercado local como para o português, são raros, dado que as figuras da Virgem, S. José e do Menino Jesus, porque entalhadas individualmente, muitas vezes se dispersam. Um exemplo mais recuado, que combina marfim e sissó indiano, pertenceu a Bernardo Ferrão (1913-1982), o principal estudioso de marfins asiáticos produzidos para exportação para o mercado português.[3] Outro exemplo, semelhante em iconografia e data, mas de menor qualidade e dimensão (15,0 cm de altura) com base em madeira, faz parte da colecção do arquitecto Mário Varela Gomes, Lisboa. Um exemplo posterior, também completo, mas sem policromia à exceção do cabelo das figuras, encontra-se no Tesouro-Museu da Sé de Braga (inv. TMSB 0158 ESC). Este grupo apresenta uma base de marfim entalhado, e as figuras surgem com cajados de peregrino e cabaças para água, embora os chapéus tricorne (de três pontas) que vemos nesse exemplar estejam ausentes no nosso. Embora antes considerado do século XVII, a presença dos chapéus tricorne sugere uma data posterior, já no século XVIII. Um exemplo comparável do século XVIII, de cerca de 1770-1780 e em terracota policromada, pertence ao Museu de Aveiro (inv. 133/B).[4]
[1] Pedro Dias, A Sé Nova de Coimbra. Breve Nota Histórica e Artística, Coimbra, Imprensa de Coimbra, 1982, p. 7; Maria de Lurdes Craveiro, António Júlio Trigueiros, A Sé Nova de Coimbra, Coimbra, Direcção Regional de Cultura do Centro, Sé Nova de Coimbra, 2011, pp. 83-85.
[2] Paula M. Mesquita Leite Santos, “Frans Francken, Peeter Neefs e Simon de Vos (pintura em cobre nos museus do Porto e Beja)”, in II Congresso Internacional de História da Arte, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 791-815.
[3] Bernardo Ferrão de Tavares e Távora, Imaginária Luso-Oriental, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, pp. 64-65, fig. 80.
[4] José de Monterroso Teixeira, Triunfo do Barroco (cat.), Lisboa, Fundação das Descobertas, Centro Cultural de Belém, 1993, pp. 376-378, cat. IV-71 (entrada catalográfica de José de Monterroso Teixeira). A sua atribuição a Joaquim Machado de Castro (1731-1822) tem sido rejeitada em anos recentes.
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